Título: Crise financeira, setor imobiliário e crescimento
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 09/10/2008, Opinião, p. A10

O recente agravamento da crise financeira americana e sua ampliação a outras partes do mundo globalizado geraram não somente justas apreensões, mas também injustos esquecimentos.

Sabem os estudiosos e os brasileiros - ainda que apreensivos com os efeitos que possam advir da retração do crédito e da demanda mundial - que teremos melhores condições de atravessar essa crise do que no passado.

Não sem razão, apesar de todas as preocupações com o futuro, as previsões ainda apontam para um crescimento superior a 5% neste ano e entre 3,5% e 4% em 2009, bastante superiores à média das décadas anteriores e às previsões de crescimento das economias centrais.

Tampouco podemos esquecer que os dados do PIB do segundo trimestre de 2008 nos apresentaram uma realidade bastante promissora. Além de mostrar uma expansão de 6,1% - a maior dos últimos quatro anos e acima da expectativa do mercado -, trouxe à luz um elemento indispensável, ou seja, que sua expansão continua alavancada em novos investimentos, no dinamismo da formação bruta de capital fixo, afastando maiores preocupações com a contribuição doméstica à inflação.

Os dados do IBGE também mostraram que o setor da construção civil cresceu mais que os outros setores industriais em expansão. Esse fato, além de confirmar o dinamismo do setor imobiliário, referenda o papel significativo dos investimentos do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) na habitação.

Contudo, há que se enfrentar a realidade internacional de frente. O governo federal tem insistido muito corretamente na necessidade de preservar o crescimento econômico e assegurar o crédito ao financiamento imobiliário, indispensável à continuidade de seu desempenho recente. Novas medidas devem ser anunciadas proximamente. Também seria importante que as taxas de juros cessem sua trajetória ascendente, possível pela própria redução da pressão de demanda.

O FGTS tem sido indispensável ao desempenho do setor, e o governo não deve aceitar qualquer outra utilização dos seus recursos, seja para o BNDES, Petrobras ou outros fins que não a habitação e saneamento urbano. Afinal, não há argumento que justifique a retirada de recursos de um setor que tem alavancado alto crescimento, sem ônus à balança comercial e com forte geração de empregos e que, ao mesmo tempo se destina a cobrir uma dívida social histórica, que se caracteriza pelo déficit habitacional de quase 8 milhões de moradias. Além disso, a disponibilização de mais recursos do Fundo e de recursos orçamentários - na forma de subsídios explícitos ex-ante - é essencial para reduzir tal déficit e ampliar o acesso da população de menor renda à moradia.

Quando se olha rapidamente o desempenho recente do setor imobiliário, ele parece estar sujeito a sinais aparentemente contraditórios.

Por um lado, o seu crescimento é visto como de tal intensidade que ameaçaria a disponibilidade de equipamentos, de material de construção e de mão-de-obra, especializada ou não. Ao longo dos últimos 12 meses, os preços dos materiais de construção acumulam alta de 10,95%.

Por outro lado, as empresas com ações no mercado vêem os preços de suas ações caírem muito mais acentuadamente que o Ibovespa. Outras empresas parecem em dificuldade por precisarem urgentemente de capital para dar continuidade aos investimentos em terrenos e lançamentos de novos empreendimentos.

Mas ambas as situações são partes constituintes de uma mesma e nova realidade: de expansão e consolidação de um setor que foi apenas recentemente libertado de uma paralisia de décadas, graças a uma série de medidas adotadas pelo governo federal nas áreas jurídica, legislativa e de crédito. Mas que - neste processo - foi atingido pela instabilidade emanada das finanças americanas.

Não há como ocultar a nova realidade que, diferentemente do ocorrido por décadas, impõe agora uma agenda de novos desafios, apenas intensificada com os desdobramentos da crise. Esta agenda não exige apenas a busca da sobrevivência como em décadas passadas, mas - sobretudo - a definição de estratégias de longo prazo e elevação da sua capacidade competitiva.

Em outras palavras, mesmo mantida a disponibilidade de crédito, o setor precisa de uma boa sacudida para elevar ainda mais sua produtividade, capacidade produtiva e investimento tecnológico. Isso em toda a cadeia da construção civil: dos fornecedores de equipamentos e de materiais, passando pela construção até a da comercialização de imóveis. É indispensável se assegurar a disponibilidade de equipamentos e material de construção e que os métodos construtivos se aperfeiçoem. A comercialização de imóveis precisa apresentar mais transparência e abandonar sua característica histórica: a assimetria de informações.

Não podemos olhar a economia e a sociedade brasileira com os olhos do passado e nos satisfazer com os avanços já realizados nos últimos anos. Tampouco o setor imobiliário. Seus investimentos - que cresceram nada menos de 14% em 2007 - precisam ser preservados ou até mesmo ampliados, de maneira a compensar a expansão dos materiais em 6,3% em 2006, 15,5% em 2007 e cerca de que 8% até agosto de 2008, ou o uso de 87% de sua capacidade produtiva.

Algumas das fantasias e sobrevalorizações que se deram quando do ingresso de tantas empresas no mercado de capitais já estão sendo deglutidas - e/ou sofridas por algumas dessas empresas - mas precisam ser tornadas transparentes e mais voltadas à elevação da competitividade e sustentabilidade de cada empresa.

O processo de fusões e aquisições apenas foi iniciado. Quando olhamos outros países com um mercado imobiliário mais desenvolvido, vemos um número menor de empresas maiores e altamente capacitadas financeira e produtivamente.

As grandes empresas parecem ter iniciado esse processo de consolidação. Aí estão as recentes fusões (Gafisa-Tenda e Brascan-Company) que, embora envolvendo pouco dinheiro vivo, mostram novas estruturações societárias. Outras iniciativas se seguirão.

As empresas menores e mais regionalizadas precisam rebaixar um pouco suas expectativas e buscar novos investidores e/ou associados em empreendimentos, para ganhar gás, capacidade de crescimento e maior competitividade.

Os fundos de investimento, por sua vez, precisam olhar com mais atenção ao setor, observar seu desempenho e mudanças recentes e favorecer sua consolidação.

Em suma, apesar da crise financeira internacional e de todos os esforços que devem ser realizados para nos manter distante de seu epicentro e de seus efeitos mais deletérios, os desafios do setor imobiliário ainda são bons desafios, pois em sua maioria são derivados de um saudável processo de crescimento.

Jorge Mattoso é consultor, foi professor do Instituto de Economia da Unicamp (1985-2008), secretário de Relações Internacionais da Prefeitura de São Paulo (2001-2002) e presidente da Caixa Econômica Federal (2003-2006).