Título: Vodu, medo e preconceito
Autor: Alves, Renato
Fonte: Correio Braziliense, 02/02/2010, Mundo, p. 18

Porto Príncipe ¿ Ex-padre católico, o então presidente do Haiti Jean Bertrand Aristide declarou, em abril de 2003, o vodu como religião oficial do Haiti. Com essa posição do governo, os casamentos realizados no vodu passaram a ser aceitos e considerados oficiais, tendo valor religioso, como ocorre com as demais religiões ao redor do mundo. Aristide acabou expulso do país por tropas francesas e norte-americanas em 29 de fevereiro de 2004, mas o vodu ficou.

No entanto, a religião sofre fortes preconceitos dentro e fora do país, onde dois terços da população são de católicos. Muito acusam o vodu de ser uma crença(1) primitiva e responsável pelo atraso social e até econômico do Haiti. Em meio à catástrofe humanitária vivida pelos conterrâneos, o cônsul do Haiti em São Paulo, por exemplo, afirmou que toda aquela tragédia era culpa de uma ¿maldição¿ feita ¿pelos africanos que moram lá¿. Tentando associar a ¿maldição¿ à ¿macumba¿, George Samuel Antoine quis dizer basicamente que o terremoto foi culpa do vodu. Ele ainda disse que a ¿desgraça de lá¿ estava sendo ¿boa pra gente aqui¿. No dia seguinte, o cônsul pediu desculpas.

Roseana Kipman, mulher do embaixador brasileiro no Haiti, Igor Kipman, vivenciou a veneração dos haitianos pelo vodu no dia do terremoto. Durante cinco horas subindo morro, passando por corpos, ela se deparou com milhares de pessoas rezando, cantando e queimando as vitimas. ¿Essa história de que eles estão queimando corpos porque são violentos, esse monte de coisa que estão falando lá no Brasil, não é nada disso. Eles aqui acreditam que quem morre sem uma parte do corpo vai voltar na próxima vida sem aquela parte. Por isso, eles queimam o corpo¿, explicou Roseana, que professa o judaísmo, a um grupo de jornalistas brasileiros no Haiti.

Roseana Kipman dá aulas de português no Haiti. Ela já se acostumou aos costumes de um povo que não costuma chorar e entrar em desespero em meio a um cenário catastrófico. ¿É um povo sobrevivente, que já passou e ainda passa por muitas privações. O índice de mortalidade infantil é muito alto. Por isso, ninguém pode ficar se apegando a uma criança que pode morrer¿, destacou. ¿As pessoas comem, em média, um prato de comida dia sim, dia não. E os mais fortes são os primeiros a comer. As crianças ficam para o fim. Um homem forte pode salvar uma criança. Mas alimentar a criança que não vai poder salvar a vida de um adulto forte não faria o menor sentido, é a cruel lógica da sobrevivência.¿