Título: Crise, safra e compromisso
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 10/10/2008, Opinião, p. A12

Os agricultores brasileiros estão se preparando para plantar a maior safra de grãos da nossa história, num cenário bastante complicado pela crise financeira americana, que nos afeta pelo menos em dois temas: a escassez de crédito e a falta de clareza dos preços agrícolas que vigerão na colheita.

O aperto do crédito global só piora a situação que já vinha ruim no Brasil: com a redução dos depósitos à vista (devido ao fim da CPMF), caiu o compulsório, principal fonte do crédito rural; a indefinição quanto ao endividamento também perturba a liberação de novos financiamentos; e o aumento violento dos custos de produção demanda muito mais recursos. Armou-se assim uma arapuca: mais demanda e menos oferta de crédito rural, na hora do plantio. Há ainda outro fator: as grandes tradings/indústrias de óleo vegetal, incomodadas com este horizonte incerto, diminuíram seu apoio financeiro aos produtores e suas cooperativas. E ainda tem falta de crédito para exportação. O governo, atento a estes fatos, foi ágil em ampliar recursos para custeio e prometeu crédito à exportação.

Por outro lado, não se sabe como ficarão os mercados agrícolas no momento da colheita. Os fundamentos para os preços se manterem acima da média persistem: os estoques estão mais baixos que os normais, a demanda dos emergentes segue aquecida e a oferta não se equilibrará em curto prazo.

No entanto, a extensão e a profundidade da crise podem mudar estes fundamentos. Empresas americanas poderão reduzir suas atividades cortando empregos, o que levaria à queda do consumo. Se os problemas persistirem, acabarão afetando a importação de produtos europeus e asiáticos, inclusive de países em desenvolvimento. Isto poderia gerar desemprego também lá, com reflexos na redução da demanda por alimentos. E aí, os preços cairiam.

Seria o pior dos mundos: plantar uma safra cara, sem crédito, e colhê-la com preços baixos. Não é um cenário provável, mas é possível, e precisamos de cuidados redobrados nas decisões sobre como plantar.

Um dos primeiros é tecnologia adequada. E é muito comum, em crises assim, produtores reduzirem o padrão tecnológico. Este é um erro, embora muitas vezes tenha que ser cometido por falta de alternativas.

De qualquer modo, há um item que demanda a maior atenção: semente.

Semente é a base de tudo, e aí é preciso estabelecer o conceito fundamental. Semente não é apenas um grão que germina, ela possui atributos de qualidade genética, física, fisiológica e sanitária que um grão não tem e que lhe confere a garantia de desempenho agronômico essencial para o sucesso de uma lavoura bem instalada. Isto tudo se encontra na semente certificada, e não há garantia de ser encontrado na semente "guardada" (grão comum) e muito menos na "pirata" (contrabandeada).

O uso de semente não-certificada pode permitir a introdução de doenças, pragas e plantas invasoras que aumentam os custos e reduzem a produção.

De 1990/91 para hoje, a área cultivada com grãos no país cresceu 25% e a produção cresceu 148%. Isto permitiu uma "poupança" de terras: se a produtividade de hoje fosse a mesma de 17 anos atrás, precisaríamos do dobro de área plantada para ter a mesma produção. O progresso técnico, portanto, é altamente preservacionista.

Claro que isto se deu em função de um pacote tecnológico bastante amplo. Mas a genética de melhoramento embutida nas sementes é, sem dúvida, um ponto central deste espetacular avanço.

Outra questão essencial é a gestão da propriedade rural: quando há uma possibilidade real de perda de renda, com conseqüente endividamento, inadimplência e renegociação (filmes já vistos tantas vezes), é necessária a máxima atenção na alocação dos recursos financeiros e nas formas de comércio. A proteção via mercados futuros é um mecanismo que vem crescendo no Brasil, mas ainda é muito pequena diante da grande produção nacional.

Em suma: a receita ideal é plantar aquilo que o crédito barato permitir, com a melhor tecnologia, não dando jamais o passo maior que a perna.

Tecnologia e gestão são as únicas ferramentas que o produtor tem ao seu alcance, o que é muito pouco quando comparado com o que têm os seus colegas dos países desenvolvidos, onde políticas públicas protegem a classe rural de crises inesperadas.

Subsídios e outras formas diretas e indiretas de proteção garantem aos produtores rurais americanos, europeus e asiáticos a estabilidade de sua atividade, independente dos preços do mercado; tais instrumentos são o fruto da compreensão das sociedades destes países de quanto é importante a segurança alimentar - agora também reforçada com o tema da segurança energética, que impulsiona a agroenergia, fenômeno capaz de mudar a geopolítica global - o que faz com que os governos os criem para o bem-estar de todos e a felicidade geral das nações protegidas.

Isto é o que realmente falta ao Brasil: uma política de Estado para o agronegócio. Não uma política apenas do Ministério da Agricultura, que vem fazendo sua parte com competência e perseverança. Mas uma política nacional. Quem estabelece os limites de crédito não é o Ministério da Agricultura, e sim o da Fazenda; orçamentos são fixados pelo do Planejamento; taxas de juros e de câmbio são poderes do Banco Central; estradas, ferrovias e portos, são resolvidos pelo Ministério dos Transportes; os biocombustíveis, tema que faria do Brasil um líder na mudança da matriz energética mundial, contribuindo com a redução do aquecimento global, são objetos de uma dezena de ministérios e outras tantas instituições federais. O Brasil é o único país do mundo com dois Ministérios da Agricultura. E, além de não termos uma política consertada, ainda existem órgãos federais que perturbam os agricultores com medidas intempestivas e intervenções que não cabem mais no Estado moderno.

No anúncio do pacote agrícola deste ano, as maiores autoridades do governo manifestaram o compromisso de mudança disso tudo: a agricultura seria objeto de um programa de governo, em bloco.

Seria maravilhoso! E devemos aproveitar este momento de grande tensão para cuidar disto. Temos boas representações nas instituições classistas e no Congresso. Temos a explicitada boa vontade do governo.

Mãos à obra.

Roberto Rodrigues, coordenador do Centro de Agronegócio da FGV, presidente do Conselho Superior do Agronegócio da Fiesp e professor do Departamento de Economia Rural da Unesp, foi ministro da Agricultura (governo Lula).