Título: Ação contra a crise não pode ignorar fundamentos
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 13/10/2008, Opinião, p. A10

É importante que o governo brasileiro tenha um plano de ação para a economia, nesse período de devastadora crise financeira internacional. Mas é também muito importante que tal plano, com suas medidas emergenciais, seja concebido de forma prudente e não venha ferir os fundamentos da política econômica, pois eles é que estão fazendo a diferença quando se compara a situação do Brasil hoje em relação às crises das últimas três décadas; do Brasil em relação a outros países; e as próprias condições de partida do país quando a poeira baixar.

São acertadas as medidas tomadas para prover liquidez aos mercados interbancário e de câmbio, como a redução dos compulsórios e a permissão para que bancos grandes ou o Banco Central comprem carteiras de crédito de pequenas instituições em dificuldades, dentre as providências recém-regulamentadas pelo Conselho Monetário Nacional. Era também esperada a ação do BC para irrigar o mercado de câmbio com venda de dólares, para dar mínimas condições de funcionamento a um setor que está com claro "overshooting" cambial e sacudido por uma volatilidade impressionante. Trata-se, segundo argumenta o BC, de devolver alguma funcionalidade aos mercados, hoje travados e sem qualquer referência para definir preços.

O regime cambial, porém, é de taxas flutuantes; o regime monetário é de metas para a inflação; e a política fiscal é de produção de superávits primários suficientes para colocar o país em sólido padrão de solvência. O mundo mudou e a selvageria anda solta. Isso não autoriza, porém, jogar os fundamentos pelos ares durante a fase de transição, que será penosa, entre os tempos do crédito farto e barato e os novos tempos, bem mais severos.

A atuação do BC no mercado de câmbio não deve, portanto, buscar uma determinada cotação, assim como não o fez quando tudo indicava que a valorização do real estava grande demais, prejudicando as exportações.

A taxa básica de juros (Selic), argumentam alguns economistas do governo, deveria cair já, seguindo os demais BCs do mundo, para evitar a derrocada da atividade econômica. No governo, os mais prudentes contra-argumentam que os juros não devem cair logo, pois há uma pressão inflacionária decorrente da desvalorização cambial, ainda não se sabe de quanto, a combater. O momento seria de dar uma parada nas duas últimas reuniões do ano do Comitê de Política Monetária (Copom), em outubro e dezembro, para se ter melhores informações sobre qual o tamanho do estrago que o colapso do sistema financeiro mundial e a abrupta suspensão do crédito, de setembro para cá, produziram na economia real. Quando o quadro econômico ficar mais claro e chegar o momento de agir, porém, é essencial que as decisões sobre juros continuem a se pautar pelo cumprimento das metas de inflação.

Preocupado com o crescimento de 2009, penúltimo ano do segundo mandato de Lula e antevéspera da campanha presidencial, o governo quer garantir, ainda que com recursos públicos, crescimento de 4% do Produto Interno Bruto (PIB) no próximo ano. Na área econômica, discute-se adotar uma política fiscal anticíclica - maiores gastos públicos para compensar possível redução do gasto privado com consumo e investimentos em 2009. Uma forma de operacionalizar essa política seria pela redução do superávit primário dos 4,5% do PIB previstos para 2008 para 3,8% do PIB no próximo.

Em tempos de normalidade, esta seria uma opção questionável para o Brasil, onde as contas nominais do setor público ainda são deficitárias. Na conjuntura atual, para se evitar que a economia soçobre, o assunto procede, desde que o governo destine integralmente o esforço contracíclico para investimentos em obras de infra-estrutura e se preserve a trajetória declinante da dívida pública.

Agora ficou claríssimo o equívoco que foi a política de aumento do gasto público praticada este ano. Foram geradas despesas adicionais pesadas que recairão sobre o Orçamento da União de 2009 justamente quando o governo precisará de margem de recursos para garantir ou mesmo aumentar os investimentos públicos.

A apreensão do governo com o nível de atividade é legítima. Mas também aqui é preciso cautela, para que não se caia na tentação de crescer artificialmente à custa de mais inflação, nem colocar em risco a solvência do setor público, conquistada a duras penas.