Título: O resgate financeiro e o descolamento
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 13/10/2008, Opinião, p. A10

Ben Bernanke disse, há poucas semanas, ao anunciar o resgate da gigante dos seguros AIG, que "não existem ateus nas trincheiras ou ideólogos em crises financeiras". De fato, nenhum liberal ortodoxo, avesso à intervenção estatal, foi encontrado para criticar as medidas do Fed e do Tesouro. Logo após, Bernanke e seu colega do Tesouro, Henry Paulson, anunciaram um plano de resgate ousado e amplo, que custaria ao governo americano US$ 700 bilhões.

Cabe notar que o plano do secretário do Tesouro não é unânime, e que vários economistas criticaram alguns aspectos da proposta original. Em particular, os democratas no Congresso, e seu candidato Barack Obama na trilha eleitoral, têm feito criticas que vão do excessivo poder do secretário do Tesouro à falta de transparência dos gastos. Por isso mesmo, na versão aprovada no Senado, cláusulas adicionais foram incluídas ao plano original, como limites para os salários dos executivos das empresas e bancos resgatados, linhas de crédito subsidiado para as famílias que perderam suas casas (e não somente os bancos) e até cortes de impostos, engordando o pacote, que ficou em US$ 850 bilhões. Poderíamos dizer, em certo sentido, que a frase de Nixon - "agora somos todos keynesianos" - continua válida, já que ninguém questiona a necessidade de intervenção estatal, mas apenas a forma mais adequada da intervenção, já que, ainda que timidamente, todos, até os antigos arautos de desregulamentação, do Estado mínimo e da privatização começaram a concordar que os mercados não são auto-regulados. A desregulamentação é apontada pela maioria como a principal causa da débâcle de Wall Street, e a necessidade de re-regular passou a ser vista com bons olhos.

O Federal Reserve, embora criado em 1913, teve sua estrutura reformada em 1935, durante o New Deal de Franklin Delano Roosevelt. Foi nesse período que a função de emprestador de última instância e a necessidade de coordenar a política monetária e fiscal foram estabelecidos como princípios de boa administração macroeconômica. Em meio à maior crise financeira desde a Grande Depressão, as instituições criadas durante o New Deal mostram como, apesar de quase três décadas de revoluções conservadoras, atuam no mesmo espírito com o qual foram desenhadas e até mesmo estendem suas funções, resgatando instituições que não estariam na alçada do Fed.

A importância do plano para o resto do mundo, e para o Brasil, não pode nem deve ser minimizada. Apesar das repetidas afirmações de economistas do governo e do mercado sobre o descolamento da economia brasileira dos mercados externos, estamos, como seria de se esperar após anos de liberalização, mais integrados à economia global. Ou seja, se a crise americana não for contida e atingir proporções dramáticas, terá efeitos sobre a Ásia e a Europa, não só diretamente, mas restringindo o crédito e a capacidade de importações dessas regiões e tendo um efeito multiplicador que nos atingirá em cheio. Por exemplo, as exportações chinesas para os EUA, aproximadamente 8% do total, cairiam, mas também cairiam as importações de componentes coreanos que os chineses usam nos bens que exportam para os EUA, e os efeitos iniciais se espalhariam por toda a economia global. Todas as regiões - e não somente os EUA - com as quais comerciamos seriam afetadas, e nossa capacidade de importar ficaria limitada, exigindo uma contenção da demanda doméstica.

Além disso, a crise terá outros efeitos sobre a economia brasileira. Não seria surpreendente se os preços das commodities, que cresceram significativamente desde 2002, tendo efeitos positivos na balança comercial de vários países periféricos, incluído ai o Brasil, pararem de subir, vindo até a cair. Isto imporá adicionais restrições à capacidade de financiamento dos déficits em conta corrente. A tese do descolamento, portanto, não se sustenta.

Por isso mesmo, o pacote, que dificilmente será a solução definitiva dos problemas da economia dos EUA, e que pode até crescer no decorrer do próximo ano - uma vez que a experiência histórica sugere que resgates financeiros podem custar até 20% do PIB, que no caso americano seria de US$ 3 trilhões - é essencial para garantir uma desaceleração mais suave da economia global. O keynesianismo, longe de ser contraditório ou representar um "novo socialismo", como sugeriu Nouriel Roubini recentemente (até porque há décadas que os republicanos são mais keynesianos que os democratas, que se transformaram no partido da responsabilidade fiscal), é parte da estabilidade institucional dos EUA.

Ao contrário do Brasil, e desde a depressão, as políticas macroeconômicas por lá são anticíclicas. Nesse sentido, a despeito da retórica sobre a necessidade de restabelecer a responsabilidade fiscal após os oito anos de George W. Bush na Casa Branca, o que pode se esperar nos próximos quatro anos são déficits fiscais crescentes e maior endividamento público. Mesmo com a expansão fiscal, e com taxas de juros moderadas, o desemprego irá aumentar. Contudo, se uma recessão a esta altura já parece inevitável, esta será provavelmente como as últimas duas, ou seja, prolongada e com uma recuperação lenta em forma de "u" e não de "v", como dizem nos mercados, mas não muito profunda.

Enquanto isso, podemos esperar que no Brasil a crise leve a um aumento das taxas de juros pelo Bacen e a manutenção da meta ampliada de superávit primário, agora em 4,3% do PIB. Apesar disso, é bem possível que a taxa de câmbio desvalorize um pouco, como de fato já tem ocorrido, e que a economia desacelere, apesar de já estar crescendo menos do que a média da América Latina, desempenho que se repete desde 2002, quando começou o boom da região. A crise financeira e o pacote americano, é lastimável, não servirão para que reavaliemos as políticas dos últimos seis anos, do mesmo modo que ocorrerá por lá.

É bem verdade que por aqui o BC já reduziu o compulsório para tentar sustentar o crédito doméstico, mas a medida é tímida e insuficiente para manter taxas de crescimento razoáveis da economia. Aqui, como lá, necessitaríamos de re-regulação dos mercados financeiros, inclusive controles de capital, uma política monetária mais frouxa e recuperar a capacidade do Estado de fazer política fiscal anticíclica. Lamentavelmente, a heterodoxia americana permitirá a manutenção de nossa ortodoxia macroeconômica, e não o nosso suposto descolamento.

Alcino F. Camara Neto é doutor em Economia pela UFF e mestre pela UFRJ. É Decano do Centro de Ciências Jurídicas e Econômicas (CCJE) da UFRJ.

Matías Vernengo é professor titular do CCJE/UFRJ e da Universidade de Utah, Salt Lake City