Título: Pausa no ciclo de alta dos juros no Brasil é imperiosa, diz Eris
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Fonte: Valor Econômico, 13/10/2008, Especial, p. A12

No meio da mais grave crise internacional a que diz já ter assistido, o economista Ibrahim Eris adverte: qualquer aumento de juros neste momento seria "uma desconsideração total com a população brasileira". Para o ex-presidente do Banco Central (BC), uma pausa no ciclo de alta de juros iniciado em abril é "imperiosa". "Querendo ou não, você tem que dar algum valor à preservação da atividade econômica", afirma ele, para quem a autoridade monetária "deve à nação 60 a 90 dias de pausa para verificar o que está ocorrendo". Davilym Dourado / Valor Ibrahim Eris: o grande público olha o valor do dólar como um termômetro muito importante da saúde da economia

Presidente da Eris Consultores, ele considera necessário "deixar a poeira baixar" antes de qualquer decisão sobre a taxa Selic, que será definida pelo Comitê de Política Monetária (Copom) na reunião do fim do mês. Não se sabe a intensidade da recessão global que vem por aí, o nível em que vão se acomodar as commodities e o novo patamar do câmbio no Brasil.

Para Eris, um crescimento de 4,5% em 2009, como apostava o governo, não deverá ser alcançado. Mesmo assim, parece difícil um número muito abaixo de 3%, já que o "carry over" (a herança estatística) para 2009 deverá ser de 2,8% - isso significa que, mesmo se a economia não crescer nada em relação ao nível do fim de 2008, a expansão no ano que vem será de 2,8%. Ele destaca, porém, a dificuldade de se fazer previsões neste momento, dado grau de incerteza que predomina no mundo e no Brasil. "Quem diria que nossas melhores empresas teriam esses prejuízos enormes?", afirma Eris, referindo-se à companhias como Votorantim, Sadia e Aracruz, que fizeram operações arriscadas com derivativos e tiveram enormes perdas com a alta do dólar.

Eris acredita que o BC deve continuar com intervenções no mercado de câmbio, para dar liquidez e evitar os excessos do mercado. "Acumulam-se reservas exatamente para isso." Segundo ele, o BC não deve ter uma meta para a taxa de câmbio, mas o fato de ofertar dólares ajuda efetivamente a jogar os preços para baixo. Eris destaca ainda que a atual cotação da moeda nada tem a ver com os fundamentos da economia. "Nenhum preço hoje, em nenhum lugar do mundo, pode ser levado a sério."

O ex-presidente do BC diz que, mesmo depois de restabelecido um mínimo de confiança no sistema financeiro global, sobrará um problema enorme de descapitalização dos bancos. Com isso, deverá haver um período prolongado de contração do crédito, que levará a uma grave desaceleração global, "com alguns países sofrendo isso mais dramaticamente, como EUA e parte da Europa, e outros em menor grau, como Brasil e outros emergentes." A seguir, os principais trechos da entrevista sobre a crise financeira global e o seu impacto sobre o Brasil.

Valor: O Plano Paulson foi aprovado, o Fed vai comprar títulos de curto prazo de empresas e vários bancos centrais baixaram juros numa ação coordenada, entre outras medidas, mas o pânico permanece. Há alguma coisa mais a fazer?

Ibrahim Eris: A situação é tão complexa e aflitiva que qualquer um que disser que consegue entender todos os aspectos está sendo muito pretensioso. Eu nunca vi nada parecido. O que nós estamos assistindo é um crash em prestações. A crise atual é a maior desde 1929 ou talvez maior que a de 1929, deixe-me dizer em que sentido. Se nós operássemos hoje com o conhecimento que havia em 1929, talvez descobríssemos que a atual é tão grande ou até maior do que a daquela época. Nós estamos vendo como foram graves as práticas dos últimos seis ou oito anos. Foi muito enfatizado o fato de que os mercados foram desregulados e de que se perdeu o controle da situação. Isso é verdade. Mas nós tivemos um período muito prolongado de juros baixos no mundo e, parcialmente como resultado disso, a economia global cresceu acima do potencial por um período também prolongado. Eu faço essa afirmação não porque valorizo um conceito como crescimento potencial, que é muito problemático, mas porque nós toleramos vários indícios que surgiram mostrando que o mundo operava num nível de atividade crescente. As commodities nos alertaram sobre esse fenômeno por dois anos. Houve valorização de ativos como um todo, como imóveis e ações. Os bancos centrais assistiram a isso e não tomaram nenhuma providência, pelo contrário. Os juros foram progressivamente reduzidos, porque a única variável a que prestavam atenção era o custo de vida. De repente, nós tínhamos viabilizado, supostamente por causa de aperfeiçoamento da política monetária, uma fórmula mágica que permitia ao mundo crescer 2%, 3% acima do padrão histórico, com a inflação 2% abaixo do padrão. Mas havia algo errado. A soja triplicava de preço, o minério de ferro subia todo ano 70%, 80% e todos os metais batiam recordes. Os juros baixos foram o maior indutor para o sistema se alavancar.

Valor: Por que houve um período prolongado de crescimento acima do potencial com commodities elevadas e a inflação não apareceu?

Eris: Em geral, quando o mundo cresce um pouco acima do potencial, começa a haver pressões inflacionárias. Os bancos centrais então puxam os juros e se criam ciclos econômicos sem explosões. Mas houve uma coisa muito peculiar nesse período de seis a oito anos que nós vivemos: simultaneamente a uma época de alta produtividade, a melhora das comunicações e a globalização permitiram que nós integrássemos à produção global vários pólos de mão-de-obra extremamente barata. Foi o caso de China, Índia, Tailândia, Vietnã. Isso possibilitou a ilusão de que era possível crescer mais e ter simultaneamente uma inflação mais baixa, com juros baixos. Além disso, o maior desses novos pólos, a China, praticava um câmbio extremamente desvalorizado, que serviu quase como âncora cambial para o mundo. Tudo o que vinha da China vinha barato. A mão-de-obra barata e o câmbio desvalorizado serviram como âncora antiinflacionária.

Valor: Que lições ficarão?

Eris: Terá que haver mais regulação, e regular apenas os bancos não basta mais. Nós teremos que regular outras instituições, como fundos e veículos novos que serão criados. A regulação tem que ser um processo dinâmico, e provavelmente num nível um pouco mais multinacional e global do que regional ou local. Outra coisa é que, nos últimos 80 anos, foi criada uma enorme literatura sobre a crise de 1929. Uma das grandes conclusões é que o crash financeiro se converteu numa depressão por causa da atuação pobre dos bancos centrais. Surgiu a receita de que, se houver crises financeiras, os bancos centrais não podem ser omissos. Devem dar liquidez e eventualmente praticar políticas monetárias expansionistas. Mas descobrimos que, embora provavelmente seja verdade, isso pode não ser suficiente. Mais uma vez, aprendemos que a humildade deve ser o maior princípio a que os economistas devem obedecer. Quando você diz que fizeram X, Y e Z e o resultado não é o esperado, eu respondo que estamos aprendendo. Os instrumentos que achávamos que funcionariam funcionam, mas parcialmente.

Valor: O que mais se pode fazer?

Eris: Sempre tem algo mais a fazer. Primeiro, nós estamos enfrentando uma crise de múltiplas dimensões. O mais aflitivo é a falta de confiança no sistema financeiro. Isso vai ter que ser minimamente restabelecido. O público tem que ter confiança de que o sistema é minimamente saudável e tem garantias. Nisso, houve avanços. O sistema bancário sangrou muito, mas as redes de proteção estão sendo construídas. A estatização parcial do sistema está progredindo. Não há como evitar. O cenário mais extremo que se pode imaginar é uma garantia de todas as operações e depósitos. Se será necessário ou não, eu tenho dificuldade de dizer. Resolvido o mínimo de confiança no sistema, vai sobrar uma enorme escassez de liquidez, uma enorme descapitalização dos bancos. Nós vamos ter efetivamente um prolongado período de credit crunch [contração do crédito]. Haverá uma grave desaceleração global, com alguns países sofrendo mais dramaticamente, como EUA e parte da Europa, e outros em menor grau, como Brasil e outros emergentes. A recuperação do crédito levará muito tempo. Estamos falando de uma desaceleração forte por uns dois anos.

Valor: O que mais caracteriza a crise financeira internacional?

Eris: A volatilidade no valor dos ativos e de variáveis importantes como o câmbio é extrema, o que cria problemas e prejuízos inesperados. Um exemplo são os derivativos usados pelas empresas brasileiras. Quando há um período favorável prolongado, você faz operações que consideram sempre a continuidade da normalidade. Todos os sistemas que os tais gênios do mercado fazem projetam o passado para frente. Todos os cálculos de risco funcionam muito bem em condições de normalidade. Mas, quando encontram uma situação de anormalidade, quebram.

Valor: E como fica o Brasil?

Eris: Há vários canais de comunicação, que nós estamos começando a descobrir em prestações. Primeiro, diziam que, como o Brasil é uma economia fechada, nós poderíamos perder um pouco de comércio, mas que isso seria insignificante. Depois, há a questão do canal do crédito. Alguns diziam que, como a participação do crédito externo no crédito total do país é pequena, o impacto seria pequeno. Mas aí lá fora há uma crise bancária, de confiança, que faz qualquer banqueiro tomar cuidado, a começar a valorizar liquidez, o que o faz desenvolver uma aversão a risco. Logo o crédito começa a secar aqui também. Isso começa a moldar a feição da crise aqui. Ninguém quer dar crédito a ninguém. Aí você descobre que a volatilidade aumenta uma barbaridade. De repente, o dólar passa de R$ 1,60 para R$ 2,50. Todas as operações que consideravam que R$ 2,50 não era imaginável viraram uma fonte de problemas para algumas de nossas melhores empresas, como Sadia, Aracruz, Votorantim.

Valor: O que explica uma alta do dólar dessa magnitude?

Eris: Nenhum preço hoje, em nenhum lugar do mundo, pode ser levado a sério. A formação de preços é determinada pelo grau de desespero momentâneo das pessoas. Eles não têm relação com fundamentos. Refletem muito mais a necessidade das pessoas de vender, fazer caixa ou sair de uma situação aflitiva, como dessas empresas brasileiras. Aí está uma fonte de demanda para o dólar que deriva exclusivamente da necessidade de zerar posições, que podem resultar até em uma eventual quebra. Quando você me pergunta o que explica a alta do dólar, há "n" fatores, desde que você comece com alguém que está desesperado. Nos EUA, um banco que precisa fazer caixa, ou que dá ordem para liquidar o que puder para mandar dinheiro para lá. O mundo inteiro está mandando dinheiro para os EUA, inclusive o Brasil. Tudo o que tiver sido retido de lucros e dividendos, se puder ser enviado, é mandado, dependendo do setor.

Valor: O BC vendeu dólares no mercado à vista, fez leilões com compromisso de recompra e ofertou swap cambial. Ele deve intensificar as ações para tentar baixar o dólar?

Eris: Acumulam-se reservas exatamente para isso. Tem que fazer sim, para evitar excessos do mercado. Tem que vender com todos os instrumentos. Eu não estou dizendo para queimar as nossas reservas. Mas nós acumulamos US$ 208 bilhões, e neste momento é necessário dar liquidez. A idéia de que o BC não deve dar liquidez porque estaria ajudando o especulador é uma enorme bobagem.

Valor: Ele tem que dar liquidez ou empurrar o dólar para baixo?

Eris: Eu não sei como distinguir entre dar liquidez e derrubar preços. Se alguém está ofertando mais dólares, está efetivamente ajudando a derrubar preços. Eu não estou dizendo que o BC deve ter um alvo. As circunstâncias são tais que eu não sei quanto custaria isso.

Valor: O governo deve ajudar de algum modo as empresas que tiveram prejuízos com a alta do dólar?

Eris: Eu não vejo por enquanto necessidade disso. O governo tem que atender a extrema iliquidez do mercado. Eu sempre fui um dos economistas que mostraram preocupação com o nível do dólar. Apesar disso, um preço de R$ 2,50, de repente, não faz sentido nenhum. Não reflete fundamentos. Há mais uma coisa que o BC não pode esquecer, e eu tenho certeza de que não está esquecendo - o grande público olha o valor do dólar como um termômetro muito importante da saúde da economia.

Valor: Como ficará o crescimento do Brasil? É possível crescer 4,5%, como prevê o governo?

Eris: A taxa de crescimento vai cair. Acho que 4,5% é muito alto. Para este ano, algo acima de 5% está dado. Para o ano que vem, se eu não estou enganado, o "carry over" será algo como 2,8%. Então qualquer coisa abaixo de 2,8% seria a admissão de uma eventual redução da atividade. Dada a saúde do sistema financeiro, entre outras coisas, isso é difícil, a menos que o mundo entre numa depressão. Mas eu prefiro não fazer nenhuma previsão mais precisa nesta hora, porque é impossível. Quem diria que nossas melhores empresas teriam esses prejuízos enormes? Isso influencia diretamente a capacidade de investimento e de endividamento, e isso impacta a atividade econômica. Nós temos algumas decisões a tomar, e uma delas é a definição dos juros. Acho que qualquer subida de juros neste momento seria uma desconsideração total com a população brasileira. Seria submetê-la a um risco totalmente desnecessário.

Valor: Por quê?

Eris: Eu entendo que o BC queira preservar a sua imagem de guardião da moeda brasileira, cujo único objetivo é a meta de inflação. Isso é compreensível, embora possa ser criticado, numa situação de normalidade. Numa situação de anormalidade, o custo desse tipo de atitude pode ser enorme. Querendo ou não, você tem que dar algum valor à preservação da atividade econômica. Uma pausa no ciclo de alta de juros é imperiosa.

Valor: Mesmo se o câmbio se estabilizar em R$ 2,20, por exemplo?

Eris: Eu estou falando em pausa. Vamos descobrir se o dólar é R$ 2,20 ou não. Vamos descobrir o grau de recessão que o mundo vai enfrentar, quanto do sistema financeiro internacional vai sobrar. O mundo pós-crise vai ser diferente. Vai crescer menos. Eu considero o episódio dos últimos anos como um parêntese na história do mundo. O BC deve à nação esses 60, 90 dias de pausa para verificar o que está ocorrendo. O Brasil tem um sistema bancário capitalizado e líquido, como diz em relatório o Fernando Montero [da corretora Convenção]. Quando a poeira baixar, enquanto muitos países vão ter um sistema bancário descapitalizado, o Brasil não terá, se não ocorrer nenhum desastre. O país terá condições de retomar mais facilmente do que o resto do mundo. Mas isso depende de como as coisas evoluírem lá fora e aqui dentro.

Valor: O BC fez bem em reduzir os compulsórios?

Eris: Sim. Como o compulsório é muito alto, é um belo instrumento para dar liquidez ao sistema nessas oportunidades. Se for o caso, pode-se reverter esse processo. Nós tínhamos uma situação de empoçamento de liquidez que poderia potencialmente criar problemas para os bancos médios e pequenos. Nós temos que atender as emergências neste momento. Não faz sentido nenhum, Deus me livre, deixar quebrar um banco, pequeno que seja, por motivos de falta de liquidez, e não por uma eventual podridão da carteira. Isso daria um sinal horrível para o resto do sistema.

Valor: Uma inflação no centro da meta, de 4,5%, é possível em 2009?

Eris: Eu não considero impossível. Vai depender de como evoluirá a atividade econômica no resto do mundo, de como serão os preços de commodities. O quadro inflacionário vai se alterar substancialmente. Quando você olha até o fim de 2009, quem pode descartar a hipótese de o petróleo trabalhar numa faixa de US$ 50 a US$ 60?

Valor: O governo deve dar alguma resposta fiscal à crise?

Eris: Primeiro, vai depender muito do BC. Ninguém esconde o fato de que o governo está dividido. Se o BC insistir na política de subir juros, o meu receio é de que dê munição a defensores de medidas fiscais expansionistas. Neste momento, seria um perigo tomar qualquer medida nesse sentido.

Valor: Há quem queira fechar as bolsas globais por uma semana. O que sr. acha?

Eris: Eu sou muito cético. A menos que você tenha algo a fazer nesses sete dias que vai arrumar as coisas de tal modo que, quando elas reabrirem, recomeçarão com um novo conjunto de regras.