Título: A moeda que virou pó
Autor: Alves, Renato
Fonte: Correio Braziliense, 01/02/2010, Mundo, p. 14

O gourde, o dinheiro local, é quase fantasma. Depois do terremoto, praticamente só o dólar é aceito

Mercado improvisado nas ruas da capital: com o gourde sem valor, muitas transações são na base da troca ou com quem consegue alguns dólares

Cidade mais atingida pelo terremoto de 7.1 graus de magnitude na escala Richter, a capital do Haiti, Porto Príncipe, abriga 3 milhões dos cerca de 9 milhões de habitantes do pequeno país. A metrópole cresceu rápida e desordenadamente. O modelo econômico adotado durante décadas teve efeitos devastadores para todo o país. As chamadas sweatshops ¿ fábricas onde eram feitas roupas de grifes famosas, vendidas nos Estados Unidos ¿ causaram uma maciça migração interna. Atraíram a mão de obra barata e desqualificada dos pequenos agricultores que já não tinham muita terra fértil para plantar. Essa gente saída do interior se instalou em favelas na capital.

O governo haitiano estima que 70% da cidade se foi com o tremor. Casas grandes, nos bairros ricos, estão totalmente destruídas. Já nas favelas, à beira-mar, como Cité Soleil, quase não se vê escombros, pois suas construções são de papelão e madeira. Nas ruas comerciais, contudo, onde ficam os edifícios mais altos, um colado ao outro, o cenário é de guerra. Parece que várias bombas caíram por lá. O padrão de construção no Haiti é inaceitável para uma cidade situada sobre uma falha tectônica. Combinação fatal.

O gourde, a moeda local que quase não tinha valor, virou pó com o terremoto. Todos agora só aceitam dólar americano no Haiti. O serviço de guia, por exemplo, sai a US$ 20 por dia. Com o carro, salta para US$ 100. Uma fortuna para os haitianos. Mas, com o país devastado, os sobreviventes não têm acesso a bens e produtos mais básicos. O pouco que resta em Porto Príncipe ou chega via República Dominicana ou é vendido a peso de ouro. Quem consegue juntar grandes quantidades de água, comida ou gasolina ganha muito dinheiro no mercado negro.

No centro da capital, o combustível passou a ser vendido por ambulantes, em todo tipo de recipiente, a preços 200% mais caros do que antes do terremoto. Donos de caminhonetes transformadas em ônibus ¿ as coloridas, inseguras e desconfortáveis tap-taps ¿ transportam galões de gasolina no lugar dos passageiros, que pagavam centavos de dólar por uma viagem. Os poucos hotéis poupados pelo forte tremor cobram diárias de US$ 200, com uma refeição básica a US$ 30, o dobro do período normal.

Sobreviventes menos gananciosos e sem um carro ou o conhecimento de outra língua para oferecer aos estrangeiros buscam o sustento nos escombros. Não são saqueadores de lojas. Eles tiram a madeira e, principalmente, as vigas de aço das casas e dos prédios destruídos para vender a um ferro-velho. O receptor do material tem esperança de revender o produto à população em uma futura reconstrução dos imóveis. ¿A gente tira até uns US$ 10 por dia. Dá para alimentar a família toda¿, conta Jean-François, dono de uma borracharia destruída, casado, pai de sete crianças.

Esgoto e comida Nas feiras livres, há um aglomerado de comida e lixo a céu aberto. Ambulantes e clientes convivem com porcos, cachorros sarnentos, cavalos e ratos. Desabrigados compram esteios arrancados de árvores para erguer suas tendas no meio da rua. Fazem isso usando lençol e qualquer pedaço de plástico que sobrou depois do terremoto. Para cozinhar a comida que conseguem, usam carvão, praticamente a única fonte de energia do país ¿ por isso, só 0,5% da cobertura vegetal nativa resistiu às queimadas. Os principais recursos naturais são o mármore e o calcário, cujas explorações estão estagnadas. Os rios não são perenes.

O salário mínimo no Haiti é de 120 gourdes na indústria têxtil (pouco mais de R$ 100). O desemprego de 80% pressiona os trabalhadores a aceitarem o que lhes oferecem. Grandes empresas têxteis norte-americanas pagam salários mais baixos que os chineses, para produzir jeans e malhas. Para essas empresas, a miséria haitiana é uma grande fonte de lucros. O único grande moinho de trigo do Haiti foi severamente danificado pelo terremoto, o que prejudicou a fabricação de farinha e complicou os esforços para alimentar a população.

DE VOLTA AO BRASIL Divididos entre o choro e a alegria pelo retorno da Missão de Paz no Haiti, 52 militares do Comando Militar do Planalto foram recebidos por autoridades e familiares, na tarde de ontem. A solenidade ocorreu no Batalhão de Polícia do Exército de Brasília, no Setor Militar Urbano, e reuniu pouco mais de 100 pessoas. ¿O Exército que cumpre a missão no Haiti está até hoje com o braço forte e a mão estendida. Você foram e são afortunados porque voltaram. Sejam bem-vindos¿, disse o comandante Luiz Adolfo Sodré de Castro. Pais, irmãos, filhos e esposas não esconderam a emoção. Foi o caso da violinista da Orquestra Sinfônica do Teatro Nacional Cláudio Santoro Kátia Pinheiro, 45 anos, que só pensava em abraçar o filho Bemmel Pisco, 28, no Haiti desde julho de 2009. ¿Depois de tudo o que ele fez e vivenciou, posso dizer: Meu filho é um herói¿, orgulha-se Kátia.

A ajuda da Caesb

Luísa Medeiros

O devastador terremoto que atingiu o Haiti há 20 dias destruiu grande parte do precário sistema de saneamento básico que servia a população. Os sobreviventes da tragédia estão sem abastecimento de água potável e precisam conviver com o esgoto a céu aberto nas regiões atingidas. A situação é crítica e oferece riscos, como a ameaça de doenças como hepatite e problemas intestinais. Para ajudar a melhorar esse cenário, a Companhia de Saneamento Ambiental do Distrito Federal (Caesb) enviará um grupo técnico para o país caribenho. O presidente da Caesb, Fernando Leite, e três engenheiros especializados no assunto deverão embarcar nesta quarta-feira para Porto Príncipe, capital do país, com a missão de elaborar um plano emergencial de reconstrução do saneamento haitiano. Leite afirma que a empresa foi convidada a participar do projeto pelo governo haitiano.

Inicialmente, o grupo fará um levantamento de campo para traçar como será a atuação (de curto, médio e longo prazo) nas áreas atingidas. Segundo Leite, a ação prioritária deverá ser o tratamento do esgoto espalhado nas ruas para evitar a propagação de doenças. ¿Ainda não sei se iremos tratar o esgoto no local ou se iremos colhê-lo e depositá-lo em valas. Vai depender das condições físicas e logísticas das cidades¿, disse. O segundo passo é a elaboração de um projeto emergencial para abastecimento de água nos acampamentos para onde são levados os sobreviventes. ¿Poderá haver captações em córregos ou em águas subterrâneas, por meio de poços artesianos. Vamos levar em conta as questões geográficas¿, afirma Leite. Por fim, o grupo brasileiro pretende fazer uma acordo de cooperação técnica com o governo do Haiti para implantar o sistema de saneamento básico definitivo.

As negociações entre a Caesb e a Direção Nacional de Água Potável e Saneamento (Dinepa) ocorreram por intermédio do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). Os gastos com equipamentos, materiais e obras serão arcados pelo banco. A Caesb ajudará com a tecnologia desenvolvida na capital e a equipe técnica especializada. De acordo com Leite, a missão da Caesb estará alinhada com o programa de atendimento ao Haiti já desenvolvido pelo governo federal. Ele e os engenheiros devem ficar uma semana no país, mas voltam em seguida a Brasília para organizar o trabalho que será executado. ¿Sabemos das dificuldades que o país passa e da falta de infraestrutura local, mas todos estão muito felizes em poder contribuir nessa tragédia sem proporção no mundo.¿

Leia amanhã: a ligação com o vodu

Americanos suspeitos de tráfico de crianças

Para o haitiano, não importa a bandeira de quem doa o alimento ou a água. Ele já não conta com o seu governo que, antes limitado, perdeu todos os prédios, os documentos, a comunicação, a fonte de renda e boa parte dos funcionários. O presidente do país caribenho, René Préval, dorme em e despacha de uma delegacia perto do aeroporto. Ele dificilmente vai às ruas ou recebe autoridades estrangeiras. Não tem quase nada a oferecer. Com isso, as tropas estrangeiras tomam conta de Porto Príncipe. Os norte-americanos controlam o espaço aéreo e o aeroporto. Brasileiros tentam controlar as ruas com os homens da Polícia Nacional do Haiti (PNH), mas o contingente é pequeno.

A PNH, que tinha 8 mil homens para cobrir todo o território haitiano, com 9 milhões de habitantes, perdeu 70 oficiais no terremoto, 400 ficaram feridos e, aproximadamente, 500 continuam desaparecidos. Para piorar, a maioria das delegacias ruiu. ¿Nós temos mais de 7 mil detentos nas ruas, que escaparam da Penitenciária Nacional no terremoto¿, ressalta o chefe da PNH, Mario Andresol. Com isso, crescem relatos de estupros nas centenas de acampamentos de refugiados e o tráfico de órfãos.

Qualquer um pode entrar e sair dos orfanatos que resistiram ao terremoto, colocar uma criança dentro de um carro e tentar levá-la em um carro, atravessando a fronteira com a República Dominicana. Na sexta-feira, 10 norte-americanos ¿ cinco homens e cinco mulheres ¿ foram presos na fronteira do Haiti com a República Dominicana, por suspeita de integrarem uma rede de tráfico humano. A informação foi revelada ontem. O grupo estava com 33 crianças haitianas, entre 2 meses e 12 anos, revelou o ministro de Assuntos Sociais e do Trabalho, Yves Christallin.

Os suspeitos seriam membros de um grupo chamado New life children¿s refuge (Refúgio para a nova vida das crianças). ¿É um roubo, não uma adoção¿, disparou Christallin. O ministro garantiu que os norte-americanos não estavam com os documentos necessários para levar as crianças legalmente do país e sequer tinham cartas de autorização dos pais delas. Uma investigação foi aberta para descobrir como os norte-americanos chegaram às crianças, que foram transferidas para um abrigo em Croix-des-Bouquets, ao norte de Porto Príncipe.

No início da noite de ontem, a diretora do centro de acolhida de menores, Patricia Vargas, afirmou que a maioria das crianças tem pais vivos. ¿Muitas chegaram a dar um endereço e número de telefone.¿