Título: Negócios com terras são suspensos
Autor: Ignacio, Laura
Fonte: Valor Econômico, 14/10/2008, Legislação & Tributos, p. E1

Um fundo de investimentos internacional de US$ 350 milhões prestes a aportar capital em projetos rurais no Brasil suspendeu os negócios em andamento até que a Advocacia-Geral da União (AGU) defina a polêmica em torno da possibilidade de aquisição de terras brasileiras por empresas nacionais com capital majoritariamente estrangeiro. O caso é um exemplo do que ocorre no meio jurídico desde que a AGU sinalizou, em um parecer do consultor-geral da União, Ronaldo Jorge Araújo Vieira Júnior - que ainda precisa ser referendado pelo advogado-geral, José Antonio Dias Toffoli, e pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva -, que o governo pretende impor limites à compra de terras por empresas de capital estrangeiro no país. Advogados recomendam aos seus clientes que aguardem o parecer definitivo para dar continuidade aos negócios que envolvem a aquisição de áreas no país, enquanto outros já estudam formas de contestar uma futura restrição na compra de terras.

"Há hoje um receio, diante da insegurança jurídica, pois se houver alguma restrição no meio do caminho, todo o cálculo de rentabilidade do negócio cai", diz a advogada Esther Jerussalmy, do escritório Velloza, Girotto e Lindenbojm Advogados Associados, que representa fundos de pensão e de private equity internacionais dispostos a investir em projetos de biocombustível, madeira e floresta - todos envolvendo a aquisição de terras.

Hoje, segundo o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), há cerca de 5,5 milhões de hectares de terras brasileiras sob o controle de estrangeiros. A polêmica surgiu porque, embora a Lei nº 5.709, de 7 de outubro de 1971, preveja que restrições feitas a empresas estrangeiras valem também para empresas brasileiras controladas por capital externo, uma alteração na Constituição Federal acabou por alterar o alcance da lei. Em 1995, a Emenda Constitucional nº 6 revogou o artigo 171 da Constituição, que distinguia a empresa de capital nacional daquela de capital majoritariamente estrangeiro. Mesmo antes da emenda, em 1994 a AGU já havia feito um parecer, a pedido do Ministério da Agricultura, no sentido de que só poderia haver restrições à compra de terras por empresas brasileiras de capital estrangeiro caso esse impedimento estivesse expresso no texto constitucional - entendimento ratificado em 1998 pelo órgão. Com isso, empresas brasileiras de capital 100% nacional e de capital majoritariamente estrangeiro passaram a ter o mesmo tratamento. Agora, no novo parecer, a AGU indica que há restrições com base no artigo 190 da Constituição, que estabelece que a lei limitará a aquisição ou o arrendamento de propriedade rural por pessoa física ou jurídica estrangeira e estabelecerá os casos que dependerão de autorização do Congresso Nacional.

"O artigo 190 dá margem para o governo criar restrições", diz Esther Jerussalmy, que defende, no entanto, que somente as terras de fronteira não podem ser adquiridas por empresas de capital estrangeiro por questão de segurança nacional.

Diante do clima de insegurança jurídica, advogados afirmam que se o parecer da AGU no sentido de limitar as aquisições de terras se tornar definitivo, há argumentação jurídica consistente para contestá-lo na Justiça. A advogada Rossana Fernandes Duarte, do escritório TozziniFreire, defende que a Emenda Constitucional nº 6 permanece em vigor e prevalece sobre o parecer. Ela afirma que há uma decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) no sentido de que a emenda revogou a limitação da Lei nº 5.709 - e que poderá ser usada como jurisprudência. A advogada acredita, no entanto, que a questão só será resolvida no Supremo Tribunal Federal (STF). "Mesmo depois da Emenda Constitucional nº 6 muitas empresas de capital majoritariamente estrangeiro tiveram que entrar com ações na Justiça para convencer os oficiais dos cartórios a registrar as operações", conta.

É esse o efeito que o novo parecer da AGU poderá provocar nas operações de compra de terras brasileiras por empresas de capital majoritariamente estrangeiro, segundo o advogado e ex-oficial de cartório de registro de imóveis Alexandre Clápis, do escritório Machado, Meyer, Sendacz e Opice Advogados, que tem clientes interessados em áreas rurais no país para a implantação de projetos de plantações de eucalipto, produção de carvão e de energia eólica. "O parecer da AGU tem influência no âmbito administrativo - junto ao Incra, aos ministérios e aos cartórios", explica Clápis, que orienta os clientes a aguardarem a nova posição da AGU, mas adianta que ela pode ser questionada em juízo.

"Qualquer investidor vai ter bons argumentos para conseguir junto ao Poder Judiciário o direito de acordo com a Constituição", defende o advogado Fábio Lemos de Oliveira, do escritório Veirano Advogados, que somente neste ano intermediou 30 operações de compra ou venda envolvendo terras em diversas regiões do Nordeste e Sudeste, sobretudo para o plantio de grãos ou de florestas para a produção de carvão vegetal. Segundo ele, seria necessário que o Congresso Nacional aprovasse uma lei federal que impusesse restrições e redefinisse o que é sociedade estrangeira - já que hoje, diz, a sociedade constituída no Brasil e com sede no Brasil é brasileira.

A advogada Maria Cecília Guimarães Isoldi, do escritório Mattos Filho, Veiga Filho, Marrey Jr. e Quiroga Advogados, afirma que a maior dúvida é como serão tratados os negócios fechados a partir de 1994 - quando a AGU disse que a Lei nº 5.709 não poderia restringir as empresas brasileiras de capital estrangeiro - até a eventual aprovação de um novo parecer. Segundo ela, desapropriações serão inconstitucionais, por conta do princípio do direito adquirido. Os especialistas argumentam que todo ato jurídico validamente praticado com base em legislação anterior à eventual restrição são atos jurídicos perfeitos - portanto, não podem ser afetados.

Em relação às operações já concluídas, a orientação dos advogados é a de correr para checar se o registro das propriedades foi realizado corretamente. Maria Cecília Guimarães Isoldi diz ainda que se o investidor estrangeiro decidir rescindir um contrato em andamento, deverá ser fechado um acordo ou ser paga uma indenização. "Em relação a contratos firmados, em que já houve investimento de contratação de trabalhadores, compra de sementes, entre outros, o pedido de indenização deve ser interposto contra a União", defende.