Título: Brasil, Índia e África do Sul querem ação coordenada contra crise
Autor: Leo, Sergio
Fonte: Valor Econômico, 16/10/2008, Brasil, p. A4

Na comparação do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, é a "revolta dos bagrinhos": na terceira reunião de cúpula de Índia, Brasil e África do Sul os chefes de Estado dos três países decidiram criar o que o primeiro-ministro indiano, Manmohan Singh, definiu como "uma estratégia coordenada" para enfrentar a crise financeira mundial. Lula chegou a sugerir o estudo de fórmulas para o comércio entre os países emergentes em moedas nacionais, como o recém-criado por Brasil e Argentina. Os ministros da Fazenda e das Relações Exteriores e os presidentes dos Banco Centrais dos três países vão reunir-se ainda neste ano para discutir a "estratégia coordenada" contra a crise. AP Photo/Manish Swarup Presidente Lula, o primeiro-ministro indiano Manmohan Singh e o presidente da África do Sul, Kgalema Motlanthe, em Nova Déli: "A revolta dos bagrinhos"

O tradutor do presidente Lula encontrou dificuldade em explicar a referência aos "bagrinhos". Lula explicou então que, no Brasil, há pelo menos dois tipos de bagres, o Jaú, grande, e os menores, comidos por este. Algumas vezes, disse, os "bagrinhos" se juntam contra o Jaú, como aconteceu quando grupos de petistas descontentes venceram a corrente hegemônica, de Lula, na eleição para a presidência do partido, na década de 90.

Feita a explicação, Lula atacou os especuladores em seu discurso: "É inadmissível que venhamos a pagar pela irresponsabilidade de especuladores que transformaram o mundo num gigantesco cassino, ao mesmo tempo em que nos prodigalizavam lições sobre como deveríamos governar", disse. Singh, Lula e o presidente sul-africano, Kgalema Petrus Motlanthe aproveitaram o encontro para críticas aos países desenvolvidos e cobranças de responsabilidade pela crise financeira mundial.

No comunicado divulgado após o encontro, eles enfatizam "a necessidade de nova iniciativa internacional para uma reforma estrutural no sistema financeiro internacional" e defendem que a "ética também deve ser aplicada à economia" e dizem que não são suficientes "medidas paliativas".

Lula foi o mais desenvolto nas acusações aos países desenvolvidos e nos elogios à situação das nações em desenvolvimento. "Índia, Brasil, África do Sul e outros países emergentes já construíram uma solidez econômica e fiscal que permite discutirmos em igualdade de condição. E até dizer para os países que estão em crise hoje como se comportar na área econômica para não permitir que o sistema financeiro vire o cassino que virou."

Lula, em entrevista após o encontro, lembrou seus telefonemas para o primeiro-ministro britânico, Gordon Brown, e para o presidente dos EUA, George W. Bush, para parabenizá-los pelas medidas tomadas contra a falta de crédito em seus países e a crise de confiança no sistema bancário. "Acho que (as medidas foram) atrasadas, poderiam ter tomado as medidas três meses atrás, cinco meses atrás, porque esta crise está há mais de um ano rodando as notícias de jornais", comentou. Para ele, a União Européia tomou "medidas mais contundentes" com injeção de capital e a parcial estatização dos bancos com problemas. "Os Estados Unidos vão ter que melhorar e aprimorar as suas decisões" após o período eleitoral, aconselhou.

"Teremos que mudar as regras", disse Lula, ao comentar ter trocado telefonemas sobre o tema com outros chefes de Estado. "Os Bancos Centrais, reunidos em Basiléia, vão ter que tomar decisões e todos terão que cumprir", disse. "O FMI tem que mudar de comportamento, aquilo que ele se prestou a fazer na década de 90, agora percebe-se que não vale muita coisa, as instituições multilaterais nessa hora não funcionam corretamente."

O tom de acusação de Lula foi acompanhado pelos outros presidentes e traduzido na declaração conjunta. "A explosão de novos instrumentos financeiros, desacompanhada de regulação sistêmica e crível, resultou, entre outras coisas, numa grande crise de confiança pela qual os responsáveis devem ser apontados e cobrados", diz a declaração. "Precisamos mais que nunca antes de um esforço renovado para reformar as instituições de governança internacional, sejam as Nações Unidas, seja o G-8", discursou Manmohan Singh.

Lula defendeu que os ministros e presidentes dos BCs dos três países discutam o comércio em moeda local como forma de evitar crises de liquidez e problemas nas exportações. "É preciso começar a fazer esta discussão para saber em quantos países a gente pode fazer isso, quais são os outros mecanismos que nós poderíamos fazer para mudar um pouco a lógica comercial do mundo", disse. "O que não dá é para ficar subordinado ao padrão de gente que está falindo, é preciso mudar."

Apesar da crítica ao dólar, Lula afirmou depois que o Brasil continuará acumulando reservas internacionais na moeda americana. "É muito importante que tenhamos reservas em dólares e vocês sabem o sacrifício que fizemos para juntar", disse, relatando que ele e seus ministros invejaram a Índia, na viagem realizada em 2004, por ter acumulado, naquela data, US$ 100 bilhões em reservas. "Chegamos a US$ 207 bilhões e isso é muito importante porque dá segurança para o país."

Embora realizado em moeda local, o sistema de compensação comercial montado por Brasil e Argentina não dispensa o dólar, que é usado como moeda de referência e para cancelar os saldos de comércio periodicamente. O ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, reconheceu a dificuldade de concretizar a proposta. "Talvez não seja fácil fazer com a Índia e África do Sul, mas precisamos encontrar soluções para que os problemas dos outros impeçam o progresso do nosso comércio." Por sugestão da Índia, a meta de comércio trilateral, hoje em U$ 10 bilhões até 2010, foi ampliada para US$ 25 milhões em 2015.

Brasil e Índia acertaram ainda que, em até três semanas, definirão uma ação conjunta para a Rodada Doha da Organização Mundial do Comércio (OMC).