Título: A fome e a crise no Dia Mundial da Alimentação
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 16/10/2008, Opinião, p. A12

Trinta bilhões de dólares por ano são necessários para garantir o direito à alimentação adequada das 923 milhões de pessoas que passam fome no mundo, segundo as últimas estimativas da FAO. O número chama a atenção, especialmente quando comparado ao pacote de US$ 700 bilhões recentemente aprovado pelos Estados Unidos para combater a crise financeira.

Ninguém tem dúvidas quanto à gravidade da crise, mas o problema da fome não é menor nem pode ser deixado para depois. Afinal, quem tem fome tem pressa, não pode esperar. A alta dos preços dos alimentos elevou em 75 milhões a população subnutrida em 2006/07. O número de pessoas com fome deve ter subido ainda mais em 2008 porque os preços dos alimentos continuaram subindo em média cerca de 40% no início do ano. E agora atravessamos uma grave crise financeira que pode agravar ainda mais esse quadro de privação.

Uma recessão teria efeitos graves sobre a segurança alimentar mundial, especialmente em regiões como a América Latina, onde o problema não é a disponibilidade de alimentos, mas a falta de acesso a eles. Um crescimento menor pode tornar esse acesso ainda mais precário se resultar em menor geração de trabalho e de renda. Em 2006/07, a população com fome na América Latina e Caribe subiu em seis milhões, alcançando 51 milhões. Entre o início da década de 90 e 2005, a população com fome na região tinha caído de 53 milhões para 45 milhões.

Portanto, não é que não tivemos melhoras, mas não temos conseguido mantê-las. Na nossa região, dois anos de alta dos preços dos alimentos puseram a perder quase todos os avanços dos 15 anos anteriores. Agora, para poder cumprir com a meta da Cúpula Mundial de Alimentação de cortar à metade a população subnutrida até 2015 temos que reduzir o número de subnutridos em 3,5 milhões de pessoas por ano.

Ainda assim, os números da América Latina e Caribe são melhores que a média mundial. Entre o início da década de 90 e 2005, a população total com fome no mundo subiu de 842 milhões para 848 milhões e, em 2007, alcançou 923 milhões.

Isso significa que celebramos o Dia Mundial da Alimentação em 16 de outubro mais distantes do objetivo de acabar com a fome.

Mas essa ainda é uma meta possível. Enfrentamos uma emergência e precisamos agir rápido, mas a segurança alimentar não se garante apenas com ações de curto prazo. Sem um olhar estratégico de longo prazo, continuaremos enfrentando a fome de batalha em batalha e correndo o risco que uma derrota ponha a perder muito dos avanços das pequenas vitórias do passado.

Felizmente, os governos já estão tomando uma série de medidas para reforçar a proteção social dos mais pobres, elevar a produção agrícola através de estímulos à agricultura familiar e reduzir os preços internos dos alimentos. As organizações internacionais estão apoiando essas iniciativas e promovendo outras. A FAO, por exemplo, está reforçando o desenvolvimento da capacidade produtiva da agricultura familiar e distribuindo insumos agrícolas, principalmente sementes, para permitir um aumento imediato na produção por meio da Iniciativa relativa à Alta dos Preços dos Alimentos (ISFP na sigla em inglês).

Numa análise das medidas adotadas pelos países da América Latina e Caribe em resposta à alta dos preços dos alimentos, o Escritório Regional da FAO identificou algumas tendências que merecem atenção. O incentivo à agricultura familiar tem se mostrado essencial para alcançar este objetivo porque transforma um aspecto do problema em parte da solução. O Brasil é um dos países mais avançados nessas políticas de apoio a agricultura familiar com programas como o Pronaf e o PAA, que garantem crédito para os investimentos e o mercado necessário para venda local da produção obtida. A combinação de compras locais da agricultura familiar para alimentar as redes sociais existentes - em especial a merenda escolar - é considerado um dos mecanismos mais promissores para dinamizar as economias locais.

Isso é importante porque na América Latina o crescimento da agricultura não tem se traduzido automaticamente na redução dos níveis de pobreza e indigência rural em muitos países. Por mais paradoxal que possa parecer, a subnutrição é maior nas zonas rurais, especialmente naquelas onde predominam pequenos agricultores pobres que produzem parte de sua própria subsistência. O potencial produtivo dessas áreas foi comprometido pela falta de recursos para investimentos e pela pobreza dos mercados locais.

Fortalecer a agricultura familiar também é uma forma de aumentar a capacidade de resposta frente a eventuais crises. Em Honduras, por exemplo, um projeto ISFP está reforçando um programa de distribuição de insumos agrícolas do governo com sementes produzidas por agricultores familiares capacitados anteriormente pela própria FAO. Países pobres e importadores de alimentos também estão valorizando produtos de sua alimentação tradicional cujo consumo vinha sendo deixado de lado e que são mais baratos que a comida importada.

As medidas tomadas também não se restringem ao âmbito nacional. Por exemplo, os países da América Central e República Dominicana estão implementando articuladamente uma série de ações para facilitar o comércio regional e realizar compras conjuntas de insumos agrícolas. Isso é importante porque permite conseguir melhores preços para insumos como fertilizantes, já que, individualmente, os países têm mercados relativamente pequenos.

O momento também requer repensar o papel do Estado na agricultura de uma maneira mais ampla. É preciso fortalecer, mas também renovar a institucionalidade rural e agrícola. Disso depende o apoio à agricultura familiar e a implantação de políticas que permitirão o retorno dos investimentos, incluindo pesquisa, que sejam acessíveis a um maior número de produtores. A renovação passa também pela inclusão de novos atores - cooperativas, associações e outros representantes do setor rural - nos processos de discussão, desenho e implantação de políticas.

O que temos visto em termos de resposta à crise nos dá esperança que a base pode estar sendo criada para evitar que ela se repita no futuro. Mas o risco de continuarmos reagindo somente de emergência em emergência é grande demais.

José Graziano da Silva é representante regional da FAO para América Latina e Caribe.