Título: China vai sofrer bastante com crise global, avalia Pettis
Autor: Lamucci, Sergio
Fonte: Valor Econômico, 16/10/2008, Especial, p. A14

O economista americano Michael Pettis esbanja pessimismo ao falar sobre as perspectivas econômicas da China. Professor de Finanças da Universidade de Pequim, Pettis diz que o país asiático, onde mora desde 2002, vai sofrer bastante com a grave perda de fôlego dos países desenvolvidos que vem por aí. "Uma desaceleração significativa no crescimento dos EUA vai machucar mercados emergentes em geral e a China em particular", afirma Pettis, observando que, nos dois últimos anos, o déficit comercial dos EUA como proporção do PIB global é maior do que há 10 ou 15 anos. Paul Haigh/Bloomberg News Michael Pettis: situação fiscal da China é bem menos robusta do que pensa a maior parte dos analistas

Além do impacto comercial, Pettis diz que a China será afetada pela "redução significativa da liquidez global e do apetite pelo risco". "É o canal talvez menos bem entendido, mas potencialmente mais perigoso." Segundo ele, no último ano, a China recebeu "uma das maiores ondas de capital especulativo já registradas na história".

Pettis também vê com ceticismo a idéia de que o investimento e o consumo das famílias possam compensar a perda de fôlego das exportações. Para completar o quadro de pessimismo, tem sérias dúvidas quanto à solidez do sistema bancário da China e não acredita que o país tenha grande espaço para promover uma política fiscal expansionista num momento de desaceleração da economia.

Pettis diz que o crescimento da China em 2009 pode ficar em apenas 6% ou 7%, se corretamente contabilizado, caso o sistema bancário seja afetado pelo indispensável ajuste a que terá de se submeter, depois de anos de expansão monetária descontrolada. O Fundo Monetário Internacional (FMI ) prevê uma alta do PIB chinês de 9,7% em 2008 e de 9,3% em 2009.

O americano, que falou ao Valor por e-mail, também não mostra otimismo em relação ao Brasil. Acha que o país será afetado pela crise principalmente pela importância das commodities na pauta de exportação do país. Leia os principais trechos da entrevista.

Valor: Muitos analistas acreditam que os países emergentes, principalmente a China, vão continuar a crescer a taxas expressivas, ajudando a evitar uma recessão global. O sr. concorda com essa visão?

Michael Pettis : Não, e venho argumentando há mais de um ano que essa crença é baseada numa interpretação errada dos números de comércio. Embora as exportações para os EUA de muitos países emergentes tenham caído como proporção total das vendas externas, isso reflete não uma dependência menor da demanda dos EUA, mas principalmente uma maior internacionalização do comércio. Os componentes estão sendo fabricados e montados em vários países antes de serem vendidos ao consumidor final. Na verdade, o déficit comercial dos EUA, como proporção do PIB global, foi mais alto nos dois últimos anos do que era há 10 ou 15 anos. Parece claro que o resto do mundo é mais, e não menos, dependente da demanda dos EUA do que era no passado. Uma desaceleração significativa no crescimento dos EUA vai machucar mercados emergentes em geral e a China em particular.

Valor: Como a desaceleração dos EUA e da Europa vão impactar a China no fim deste ano e em 2009?

Pettis: Há dois principais canais de impacto. O primeiro é por meio de uma desaceleração no crescimento das exportações, um dos pilares da economia chinesa. Se o crescimento das vendas externas perder força muito dramaticamente, principalmente em combinação com uma desaceleração da demanda doméstica e no mercado imobiliário, nós poderemos ver um aumento significativo de empréstimos podres no setor bancário. O segundo, talvez menos bem entendido, mas potencialmente mais perigoso, é pela redução significativa da liquidez global e do apetite pelo risco. No ano passado, a China foi o destino de uma das maiores ondas de capital especulativo já registradas na história. É inconcebível para mim que esse fluxo especulativo não tenha um impacto significativo sobre o sistema financeiro chinês. Eu acredito que, se houver uma reversão desse fluxo, será bastante danoso ao sistema financeiro do país.

Valor: O sistema financeiro da China é saudável o suficiente para resistir à crise?

Pettis: Você nunca sabe quão saudável é um sistema bancário até o momento em que ele é testado, e estamos só começando a testar o da China. Há, porém, poucos casos na história - talvez nenhum - em que vários anos de crescimento monetário muito rápido não levaram a sistemas bancários vulneráveis, especialmente quando uma grande parte da expansão ocorreu por causa de fluxos especulativos. Você também tem que lembrar que, na China, o sistema bancário informal ou subterrâneo é muito grande, talvez compreendendo um terço de todos os empréstimos, e cerca de metade em algumas províncias importantes. Aí é que poderão surgir alguns dos mais graves desequilíbrios.

Valor: O investimento e o consumo das famílias podem compensar a perda de fôlego das exportações?

Pettis: Nós vamos ver, mas eu duvido. Houve um aumento forte no consumo das famílias em julho e agosto, mas eu suspeito que boa parte tem relação com a Olimpíada. Acho que o consumo vai crescer muito mais devagar nos próximos meses [em agosto, a venda de carros caiu 6,25% em relação ao mesmo do ano passado]. O investimento provavelmente já foi afetado pelo enfraquecimento do mercado imobiliário e, se os estoques aumentarem, como espero, acredito numa desaceleração também dos investimentos não imobiliários.

Valor: E a política fiscal? O governo tem espaço para promover uma expansão dos gastos?

Pettis: Embora cada vez mais analistas comecem a dividir as preocupações com o sistema bancário que eu tenho expressado nos últimos três anos, quando o assunto é a questão fiscal eu sou muito mais pessimista que qualquer um. Com isso, talvez você queira considerar o que digo com alguma cautela. Eu não acredito que o governo esteja numa posição fiscal tão sólida como a maior parte dos analistas acredita. A dívida direta e indireta - e eu não estou incluindo obrigações de longo prazo, como passivos de aposentadorias sem cobertura) - é provavelmente muito maior do que os números oficiais, que, dependendo de como você faz a conta, vão de 20% a 30% do PIB. No entanto, acho que a dívida real do governo chinês supera a dívida visível porque há uma quantidade de passivos escondidos nas províncias e nos municípios e por causa do legado de antigos empréstimos podres. Mesmo sem contar a possibilidade de que uma economia em desaceleração leve a um dramático aumento em empréstimos podres (que em última instância podem se tornar passivos contingentes do governo), a dívida total do governo é provavelmente de 50% do PIB ou até maior.

Valor: O que isso implica em termos fiscais?

Pettis: Isso significa que a China tem muito menos espaço para ter grandes déficits fiscais do que podemos supor, e justamente no período em que ela mais precisa ter déficit, quando a economia está em desaceleração. E a questão não é apenas que pode haver mais dívida do que se acredita. Também há um problema com o equilíbrio fiscal corrente. Ele não é tão estável como pode parecer à primeira vista. O meu problema básico sempre foi que, com receitas e despesas crescendo ao ritmo de 30% ao ano ou mais, não seria necessária uma grande mudança na relação entre as duas para haver uma mudança no orçamento em direção a um grande superávit ou déficit. Com as condições globais e domésticas numa aparente tendência de queda, é fácil construir um cenário plausível em que as despesas começam radicalmente a superar as receitas. O crescimento das receitas já está desacelerando fortemente, enquanto as despesas estão em aceleração. E quanto mais dessa tendência pode ocorrer à medida que a economia perde força e os governos municipais, que obtêm boa parte de suas receitas com a venda de terra, vêem o esfriamento do mercado imobiliário?

Valor: A China cresce acima de dois dígitos há vários anos. É possível continuar nesse ritmo ou o país tem que aceitar um crescimento mais modesto daqui para frente? Qual é a sua previsão para a expansão da China em 2009?

Pettis: Nos próximos cinco anos, à medida que o maravilhoso perfil demográfico da China dos últimos 30 anos - em que a população economicamente ativa cresce várias vezes mais que a população total - se reverter, tornando-se um dos maiores problemas demográficos de qualquer país grande, terá de haver necessariamente uma desaceleração do crescimento - a população economicamente ativa vai cair muito mais que a população total. Além disso, há um consenso crescente de que o ritmo de degradação ambiental é simplesmente insustentável. A necessidade de reduzir emissões e outros custos ambientais vão quase certamente forçar uma redução nas taxas de crescimento. Claramente o crescimento econômico de equilíbrio da China vai desacelerar, embora eu espere que ele continue forte por ao menos uma década. No entanto, acredito que a China vai ter que fazer dois ajustes graves e custosos no curto prazo. Primeiro, vai ter que passar de um modelo liderado pelas exportações para um puxado pelo consumo doméstico. Historicamente, isso nunca foi um processo fácil para nenhum país, incluindo os EUA e o Brasil, e não espero que seja fácil para a China. Segundo, e mais urgente, o sistema financeiro precisa se ajustar depois de um período de vários anos de expansão monetária fora de controle, que claramente está chegando ao fim. Se isso criar um problema no sistema bancário, o crescimento no ano que vem pode facilmente ficar muito abaixo do que a maioria espera - 6% a 7%, se corretamente contabilizado -, embora eu odeie fazer projeções de crescimento numa economia tão volátil e em condições tão voláteis, porque a única certeza é que a realidade será muito melhor ou muito pior do que as expectativas.

Valor: Quais os principais desequilíbrios econômicos da China?

Pettis: O excesso de poupança, o sistema bancário exigido além da capacidade e a dependência de grande parte do crescimento no setor exportador. Na verdade, uma sociedade tão grande e em rápida mudança tem tantos desequilíbrios como fontes de robustez.

Valor: Nos últimos anos, o Brasil se beneficiou do elevado crescimento global, principalmente da demanda da China por commodities. Como o Brasil será afetado por um cenário global menos favorável?

Pettis: Mal, eu temo. Historicamente, o fim de períodos de globalização nunca foi fácil para países em desenvolvimento, especialmente, como é o caso do Brasil, em que a importância das exportações de commodities cresceu tanto nos anos recentes.