Título: Quem matou Wall Street?
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Fonte: Valor Econômico, 17/10/2008, Opinião, p. A11

Atualmente, não é preciso fazer força para ser cético diante do mundo financeiro. Mas recordemos quão persuasiva era, há não muito tempo, a lógica das inovações financeiras que nos levaram às nossas atuais dificuldades.

Quem não desejaria que os mercados de crédito ajudassem as pessoas a terem suas casas próprias? Assim, começamos a introduzir alguma competição genuína no mercado de financiamento de crédito imobiliário, permitindo que instituições não-bancárias concedessem empréstimos para compra de casas próprias e oferecessem financiamentos criativos e mais baratos a interessados não bem atendidos por financeiras convencionais.

Depois, permitimos que esses empréstimos fossem reunidos e reempacotados na forma de títulos passíveis de ser vendidos a investidores, reduzindo os riscos, mediante essa operação. Dividimos o fluxo de pagamentos desses empréstimos ainda mais em prestações de risco variado, compensando os detentores dos tipos de títulos mais arriscados com juros mais altos. Então convidamos as firmas de classificação de crédito para certificarem que esses títulos lastreados em hipotecas imobiliárias menos arriscados eram suficientemente seguros para que neles investissem fundos de pensão e companhias seguradoras. Para o caso de alguém ainda demonstrar preocupação, criamos derivativos que permitem investidores adquirir seguro contra inadimplência dos emissores desses títulos.

Se o leitor quisesse demonstrar as vantagens das inovações financeiras, não poderia apresentar esquemas melhores. Graças a eles, milhões de famílias mais pobres e até então excluídas tornaram-se proprietárias de casas, investidores obtiveram elevados retornos e intermediários financeiros embolsaram as taxas e comissões. Tudo isso poderia ter funcionado maravilhosamente - e até cerca de um ano e meio antes muitos financistas, economistas e autoridades econômico-financeiras acreditavam que sim.

Então, tudo desabou. A crise que tomou conta dos mercados financeiros nos últimos meses enterrou Wall Street e humilhou os EUA. Em comparação com a operação de ajuda de quase US$ 1 trilhão a instituições financeiras em dificuldades que o Tesouro americano teve de montar, os derretimentos de mercados emergentes - como a crise do peso mexicano em 1994 ou a crise financeira asiática de 1997-1998 - parecem meras notas de rodapé.

Mas o que foi que deu errado? Se nossas medidas não atacarem as verdadeiras causas subjacentes à crise, nosso recém-descoberto fervor regulamentador poderá acabar dizimando os tipos proveitosos de inovação financeira, juntamente com os de tipo tóxico.

O problema é que não há escassez de suspeitos. Terá sido o problema criado por financeiras imobiliárias inescrupulosas que inventaram termos creditícios - como juros "sedutores" e penalidades por pré-pagamento - o que levou tomadores de empréstimos desavisados a uma armadilha de endividamento? Talvez, mas essas estratégias não fariam sentido para os emprestadores, a menos que eles acreditassem que os preços das casas continuariam a subir.

Então, quem sabe o culpado é a bolha no mercado habitacional que se formou no fim da década de 90 e a relutância do Fed de Alan Greenspan de desinflá-la. Mesmo assim, a explosão na quantidade de Collateralized Debt Obligations (CDOs) e títulos similares foi muito além do que era necessário para sustentar os empréstimos hipotecários. Isso foi também verdade no que diz respeito aos "swaps de risco de crédito" (Credit Default Swaps - CDS), que se tornaram um instrumento de especulação em vez de um seguro, e atingiram um espantoso volume de US$ 62 trilhões.

Portanto, a crise poderia não ter atingido a escala a que chegou sem que as instituições financeiras de todos os tipos se alavancassem ao máximo na busca de retornos mais altos. Mas o que estavam fazendo as firmas de classificação de crédito? Tivessem elas feito seu trabalho adequadamente e emitido em tempo hábil advertências sobre os riscos, esses mercados não teriam atraído tantos investidores com terminaram fazendo. Não estará aqui o "x" da questão?

Ou talvez os verdadeiros culpados estejam do outro lado do mundo. Famílias asiáticas fortemente poupadoras e bancos centrais entesourados de dólares produziram excessiva poupança mundial que levou as taxas de juros reais a território negativo, o que por sua vez atiçou a bolha no mercado habitacional americano, ao mesmo tempo em que levou os financistas a iniciativas cada vez mais arriscadas com dinheiro emprestado. Autoridades econômico-financeiras macroeconômicas poderiam ter agido apropriadamente e a tempo para desfazer esses grandes e insustentáveis desequilíbrios em conta corrente. Nessa hipótese não teria havido tanta liqüidez vagando por aí, à espreita de um acidente.

Mas talvez o que efetivamente tenha nos colocado nessa confusão tenha sido o mau papel desempenhado pelo Tesouro dos EUA à medida que a crise foi evoluindo. Por piores que estivessem as coisas, o que fez os mercados de crédito surtar foi a recusa do secretário do Tesouro, Henry Paulson, de ir em socorro ao Lehman Brothers. Imediatamente após essa decisão, os recursos de curto prazo - até mesmo para as empresas mais bem capitalizadas - praticamente despencaram e o sistema financeiro inteiro simplesmente tornou-se disfuncional.

Em vista do que estava prestes a ocorrer, poderia ter sido melhor que Paulson tampasse seu nariz e fizesse com o Lehman o que já fizera com o Bear Stearns e teria de fazer poucos dias depois com a AIG: salvá-la com dinheiro do contribuinte. Wall Street poderia ter sobrevivido e os contribuintes americanos teriam sido poupados de pagar faturas ainda maiores.

Talvez seja fútil buscar uma causa individual sem a qual o sistema financeiro não teria explodido em nossas caras. Um pensamento reconfortante - se o leitor ainda quer acreditar em sanidade financeira - é que esse foi um caso de "tempestade perfeita", uma rara falha que exigiu que um grande número de estrelas estivesse em alinhamento simultâneo.

O que, então, revelará a "autópsia" de Wall Street? Que se tratou de um caso de suicídio? Assassinato? Morte acidental? Ou foi uma rara instância de falência generalizada de órgãos? Provavelmente jamais saberemos. As regulamentações e precauções que os legisladores porão em vigência para coibir sua recorrência permanecerão, portanto, necessariamente imprecisas e de eficácia incerta.

É por isso que o leitor pode estar certo de que teremos outra crise financeira importante em algum momento futuro, depois que esta tenha desaparecido dos recessos de nossa lembrança. O leitor pode apostar as economias de sua vida nisso. Na realidade, o leitor provavelmente fará isso.

Dani Rodrik é professor de economia política na Escola de Governo John F. Kennedy, na Universidade Harvard, foi o primeiro agraciado com o prêmio Albert O. Hirschman, concedido pelo Social Science Research Council. © Project Syndicate/Europe´s World, 2008. www.project-syndicate.org