Título: Era Bush: derrota final da heterodoxia?
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Fonte: Valor Econômico, 17/10/2008, Opinião, p. A10

O que esperar dos Estados Unidos após o desmoronar de Wall Street? E do mundo? A economia americana já entrou em processo recessivo. Como sairá dele?

Tentando se embrenhar no universo das lições que esta crise trouxe, é inevitável que a perduração de mais perguntas do que respostas, afinal todo o processo ainda não pode ser inteiramente desmembrado e estudado.

Crises são crises, sejam elas numa economia em escala global, numa empresa multinacional, numa cidade, no comércio da esquina ou na vida pessoal de qualquer indivíduo. Embora suas naturezas sejam distintas, todas têm uma particularidade em comum: deixam marcas. Elas podem ser benéficas ou maléficas, depende das lições que proporcionam aos que a vivenciaram.

No universo da gestão macroeconômica, particularmente e especificamente nos Estados Unidos, onde estourou a bolha do mercado de crédito imobiliário que iniciou todo o processo, é explícito que a origem de todo o problema esteve num ciclo econômico de longo prazo da economia americana. O embrião tem nome e sobrenome: desajuste fiscal. Os Estados Unidos, como resposta à recessão desencadeada em 2001, implementou sua "experiência heterodoxa". Errou e ruiu pelas mesmas razões que levaram economias emergentes a ruir ao longo do século XX: não respeitou o "prazo de validade" do choque de liquidez fiscal e monetária aplicado. Embebedado pelos resultados de curto prazo, quis estendê-lo por período além do que a razão recomenda.

Como razões para o desajuste fiscal, destacam-se ao menos duas: 1) redução do nível de impostos como resposta à recessão após o estouro da bolha da Nasdaq e dos ataques terroristas de 11 de setembro de 2001; 2) estouro dos gastos militares com a ação no Iraque; e 3) redução da taxa de juros para 1% ao ano. Empurraram o problema para frente, injetando artificialmente liquidez para esterilizar parte dos desequilíbrios induzidos.

Na história recente, a economia dos EUA passou por esta condição de desequilíbrio fiscal agudo entre 1982 e 86. Depois voltou a enfrentá-la entre 1990 e 92. Após um longo período de "conserto" na Era Bill Clinton, vivenciou novo desmantelamento fiscal a partir de 2001, chegando a seu pico histórico em déficit fiscal e endividamento público.

A lição fundamental da crise de crédito americana para os negócios e para os investimentos não é nova: a natureza não opera em saltos, tampouco a vida econômica. A acumulação de riqueza é sempre gradual. Quando a posição "curto-prazista", diante dos fundamentos da oferta e demanda, se torna insustentável, o ciclo se inverte de modo punitivo para os investidores a descoberto. Isto serve a países, empresas, pequenos investidores.

A resposta convencional para o desafio dos ciclos, sempre válida em qualquer caso, é a diversificação de carteiras. Entretanto, tal proteção não consegue lidar adequadamente com riscos do tipo sistêmico, quando todas as classes de ativos parecem estar afetadas por uma doença rara dos mercados. Quando toda a macroeconomia se move ao mesmo tempo, é como se o horizonte deixasse de ser linear. Só que esta não se move sozinha, é movida por políticas econômicas e decisões de longo prazo.

A economia tem uma desvantagem em relação a outras ciências. Ela trata do cotidiano financeiro da vida, logo, não oferece laboratórios para a realização de testes; exatamente por isso, assim como a história, é uma ciência que não dá margem para que experimentos possam ser refeitos. Só resta olhar os fatos como se deram e tentar tirar lições deles. O contraponto entre a última década de políticas aplicadas ao Brasil e EUA é um laboratório vivo a permitir a coleta de resultados e a aprendizagem.

O Brasil diminuiu sua vulnerabilidade externa e estabilizou sua macroeconomia, num processo árduo e prestes a completar 15 anos. Os principais indicadores da economia brasileira continuam em posição muito favorável, especialmente quando cotejados ao desempenho pretérito, mantendo o país em rumo ascendente em sua classificação de risco soberano.

Em abril de 2008, pela primeira vez em muitas décadas, o déficit nominal do Brasil em suas contas públicas ficou abaixo de 2% de seu PIB. O país já se enquadra, por exemplo, nos critérios fiscais para entrada na União Européia.

O grau de investimento do Brasil foi, sem dúvida, uma conquista. Uma geração inteira de brasileiros sofreu as conseqüências de um intenso ajuste macroeconômico que tirou o país da posição de "patinho feio" da economia global. Hiperinflação e hiperdéficit fiscal (resultado nominal com déficit de 80% do PIB no começo de 1994) parecem ser fatos a serem relatados tão só nos livros de história econômica. A aversão aguda a investir no mercado brasileiro também. Falta inserir nesta lista os resquícios de indexação monetária e os juros altíssimos.

Enquanto isto, os EUA conviveram com expansão exponencial de gastos públicos, taxa de juros inferior ao equilíbrio de mercado, populismo patriótico/nacionalista de guerra e endividamento crescente. A gestão Bush na Casa Branca os conduziu por caminhos similares aos percorridos pelos países emergentes no final da década de 70 e por toda a década de 80. Terão os Estados Unidos se tornado uma República de Bananas? O sucessor de George W. Bush é quem nos responderá.

A grande ironia a ser contatada às futuras gerações de brasileiros é que os EUA visitaram a ruína com a política estritamente heterodoxa da Era Bush - um choque keynesiano na linguagem econômica - e, por outro lado, em outro hemisfério, o Brasil - que, como afirmou o ministro da Fazenda Guido Mantega: "em outra situação, estaríamos de quatro" -, com o menor nível de déficit fiscal de sua história (o que poderia ser dito como o maior governo ortodoxo da história do Brasil), conseguindo enfrentar os impactos mais diretos da desaceleração da economia internacional sem adentrar um quadro recessivo.

O grande risco e maior erro, no que se trata de política econômica brasileira, possível de ser cometido no processo de dar uma resposta à menor liquidez proporcionada pela recessão externa desencadeada pela crise em vigor, seria o uso do mecanismo fiscal (similar ao choque heterodoxo de Bush) para injetar mais liquidez na economia doméstica.

A oportunidade que o Brasil terá diante de si será a de utilizar as janelas de oportunidade abertas pela desaceleração externa para encontrar margens de redução da taxa de juros. Este seria um caminho são de injeção de liquidez sem comprometimento de longo prazo sobre a saúde econômica do país. O presidente Lula parece que já farejou isto, pois chamou o Banco Central do Brasil a um papel ativo, ao ter afirmado que gostaria de ver um Copom mais ousado frente ao desaquecimento da economia.

Marcel Pereira é economista-chefe da RC Consultores.