Título: Crise esfacela preço dos imóveis nos EUA
Autor: Balthazar, Ricardo
Fonte: Valor Econômico, 20/10/2008, Especial, p. A14

O declínio continuado dos preços dos imóveis nos Estados Unidos está agravando os problemas existentes no mercado imobiliário americano, corroendo o patrimônio de milhões de pessoas que compraram suas casas recentemente e gerando novas complicações para o sistema financeiro e a economia do país.

Com o desemprego em alta e a recessão batendo à porta, muitas famílias têm suado para continuar pagando suas hipotecas. Elas alcançaram o sonho da casa própria obtendo empréstimos em condições muito vantajosas nos últimos anos e agora estão com dificuldades porque as prestações subiram e não cabem mais no orçamento doméstico.

Mas até proprietários que têm condições de ficar em dia deixaram de pagar suas dívidas, devido aos prejuízos provocados pela desvalorização dos imóveis. Essas pessoas preferem perder as casas em que moram e ver o investimento feito até agora evaporar, porque a perda financeira seria maior se elas continuassem honrando seus compromissos.

Cerca de 12 milhões de pessoas têm atualmente dívidas superiores ao valor de suas residências, segundo a consultoria Moody"s Economy.com. Pagar a hipoteca em dia nessas circunstâncias é perder dinheiro na certa. De cada seis pessoas que moram em casa própria nos Estados Unidos, uma se encontra nessa situação.

O governo, o Congresso e a iniciativa privada lançaram nos últimos meses diversos programas para renegociar essas dívidas e evitar que os problemas se alastrem ainda mais. Mas os resultados foram pífios. Muitos proprietários que conseguiram renegociar hipotecas com os bancos voltaram a ficar inadimplentes pouco tempo depois.

"Em geral os novos contratos se limitam a empurrar o problema com a barriga, mantendo as cláusulas que fizeram as prestações aumentar e cobrando os atrasados lá na frente", disse Lou Tisler, diretor-executivo da Neighborhood Housing Services, empresa que ajuda proprietários com problemas a renegociar suas dívidas no Estado de Ohio.

A bolha especulativa que inflou o mercado imobiliário americano no início da década estourou em meados de 2006. Desde então, os preços dos imóveis nos EUA caíram 21%, conforme o índice S&P/Case-Shiller, principal termômetro do setor. Os economistas acreditam que os preços continuarão caindo por vários meses antes de encontrar um ponto de equilíbrio.

Quem comprou no auge da bolha é quem mais está sofrendo agora. Segundo o site Zillow, que compila informações sobre negócios feitos no país inteiro, 45% dos proprietários que adquiriram imóveis em 2006 e 37% dos que fizeram isso em 2005 têm agora dívidas superiores ao valor que poderiam obter se vendessem suas propriedades.

O fim da bolha imobiliária está na raiz da crise de confiança que atualmente sufoca o sistema financeiro global. Os empréstimos feitos nos tempos de euforia foram usados para lastrear trilhões de dólares em títulos que hoje estão azedando nas carteiras de bancos, seguradoras e outras instituições financeiras.

A inadimplência no setor não pára de aumentar, dois anos depois da implosão da bolha. Mais de 6% das hipotecas estavam com pagamentos em atraso no fim de junho, segundo a Associação dos Banqueiros de Hipotecas. Entre os clientes de alto risco que foram os primeiros a deixar de pagar, 19% estão inadimplentes atualmente e correm o risco de perder suas casas.

Além do impacto direto sobre o sistema financeiro, os problemas do setor imobiliário contribuem para a desaceleração da atividade econômica. Os proprietários endividados estão apertando o cinto e deixaram de consumir como antigamente. Com o mercado cheio de casas que ninguém quer comprar, as construtoras estão cancelando obras e demitindo funcionários.

Muitos economistas acham que forçar a renegociação das hipotecas em termos mais generosos seria a melhor maneira de superar a crise atual, porque isso ajudaria a valorizar os ativos dos bancos e a reanimar a atividade econômica. Mas o governo tem preferido usar o seu dinheiro para lubrificar as engrenagens dos mercados de crédito e reerguer os bancos em dificuldade, sem atacar diretamente os problemas do mercado imobiliário.

"O governo deveria ter agido muito antes para evitar que o problema fugisse ao controle", disse o advogado Michael Barr, professor de direito da Universidade de Michigan. "O trágico é que o governo esperou meses para intervir e deixou os proprietários endividados por último na fila dos que terão ajuda."

Um dos fatores que torna complicada a renegociação das hipotecas é a forma como os empréstimos foram empacotados e vendidos pelos bancos. Muitos dos títulos que têm as hipotecas como lastro possuem cláusulas que impedem a renegociação dos contratos originais. Os credores desses títulos são investidores do mundo inteiro que não têm condições de negociar com os proprietários inadimplentes.

Uma associação formada por bancos, companhias hipotecárias e organizações assistenciais chamada Hope Now Alliance conseguiu nos últimos meses renegociar as hipotecas de 2,6 milhões de pessoas, evitando que elas perdessem suas casas. Mas na maioria dos casos houve apenas um pequeno abatimento nos juros, sem redução do principal da dívida, o que significa que essas pessoas certamente terão novos problemas no futuro.

Um estudo feito pelo banco Credit Suisse, que analisou milhares de contratos modificados recentemente, concluiu que quase um terço dos proprietários que renegociaram seus empréstimos no último trimestre do ano passado voltaram a ficar inadimplentes depois de oito meses. Um quarto dos que tiveram redução do principal voltaram a atrasar os pagamentos da hipoteca nesse mesmo período.

Em julho, o Congresso americano autorizou o governo a gastar US$ 300 bilhões para renegociar hipotecas de quem estiver com a corda no pescoço. O governo oferecerá empréstimos com taxas de juros fixos e 30 anos para pagar, desde que os atuais credores concordem em abater o principal e os proprietários tenham os documentos em ordem, condição que poderá excluir muitos imigrantes que se endividaram no auge da bolha.

Estima-se que o programa do governo poderá beneficiar cerca de 400 mil pessoas, uma pequena fração dos milhões de proprietários que estão atravessando dificuldades. Quase três meses depois de aprovado pelo Congresso, o plano ainda não começou a ser executado por causa de questões burocráticas.

Bancos e companhias hipotecárias também têm perdas significativas com a inadimplência de seus clientes. Em geral, eles têm recuperado menos da metade do valor dos imóveis nos casos em que decidem retomar as casas dos proprietários inadimplentes para cobrir seus prejuízos. Ninguém será obrigado a participar do programa do governo. Ele terá caráter voluntário.

Muitos especialistas têm sugerido ao governo mecanismos para incentivar a participação dos credores. Uma proposta que surgiu prevê a substituição das hipotecas com problemas por contratos em que as condições seriam revistas periodicamente conforme a evolução dos preços dos imóveis, o que reduziria os riscos para os proprietários e seus credores. "Seria também uma forma de evitar a formação de novas bolhas no futuro", disse o economista Andrew Caplin, da Universidade de Nova York.