Título: Crise delineia nova ordem geopolítica
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 20/10/2008, Opinião, p. A13

Culpe banqueiros gananciosos. Culpe o imprudente comando de Alan Greenspan à frente do Fed (Federal Reserve, banco central dos EUA). Culpe as pessoas irresponsáveis que pactuaram financiamentos que nunca esperavam honrar. Culpe políticos e agências regulamentadoras irresponsáveis por fecharem seus olhos à aproximação da tempestade.

Todos os mencionados acima são culpados. Estou certo de que há ainda mais vilões à espreita. Mas, às vezes, vale a pena olhar na outra ponta do telescópio. A destruição do sistema financeiro tem como espelho a mudança no equilíbrio geopolítico. Ela oferece recomendações, e é uma advertência, sobre o que o Ocidente deve fazer a respeito da ordem mundial emergente.

Até muito recentemente, falava-se sobre a humilhação sofrida pelo capitalismo "laisser faire" americano. O socorro de US$ 700 bilhões decidido pelo governo americano foi o preço pago por arrogância passada. Por razões que ainda me escapam, alguns políticos europeus pareceram deleitar-se com os problemas de um aliado que ainda assegura sua segurança.

"Schadenfreude" surge antes de uma queda. A sólida e conservadora Alemanha foi um dos países europeus forçados a dar sustentação a seus bancos. A chanceler Angela Merkel sentiu-se na obrigação de assegurar publicamente ao eleitorado alemão que suas economias estão seguras.

A Bélgica e a Holanda foram em socorro ao Fortis. Irlanda e Grécia declararam garantia generalizada a correntistas. Outros países fizeram algo similar. Em ação mais radical, o governo britânico de Gordon Brown promoveu a estatização parcial de seus principais bancos, numa tentativa desesperada de romper o congelamento do crédito.

Se os títulos hipotecários tóxicos e swaps de crédito opacos que infectaram o sistema financeiro mundial vieram com um selo de fabricação americana, os bancos europeus foram compradores dedicados. Em vez de humilhação americana, deveríamos dizer humilhação ocidental.

A Ásia, como vimos nos mercados nesta semana, não está imune a choques e tensões. O Japão, que só recentemente saiu do longo ocaso de seu colapso bancário da década de 90, agora foi novamente impactado pela tormenta mundial. A China sentiu-se nesta semana obrigada a acompanhar os bancos centrais ocidentais no corte nos juros. Uma série de países asiáticos menores fez o mesmo. A recessão nos EUA e na Europa reduzirá o crescimento das economias emergentes asiáticas.

Numa apreciação mais distanciada, porém, duas coisas tornam esta crise única. Primeiro, sua própria ferocidade. Não estou seguro sobre quão útil é fazer comparações com a década de 30. A história nunca viaja em linha reta. É evidente que os governos e bancos centrais não tiveram experiência anterior em enfrentar choques e estresses com a intensidade e ubiqüidade que vimos durante o ano passado.

A segunda diferença é geográfica. Pela primeira vez, o epicentro foi no Ocidente. Vistas de Washington, Londres ou Paris, as crises financeiras costumavam ser coisas que aconteciam com outros povos - latino-americanas, asiáticos, russos.

As ondas de choque às vezes repercutiam em praias ocidentais, geralmente na forma de pedidos de socorro dos países ricos a seus próprios bancos imprudentes. Mas essas crises respeitavam uma linha divisória entre o Norte e Sul, entre o mundo industrializado e o em desenvolvimento. Os países emergentes viam-se em dificuldades; o Ocidente lhes dizia severamente o que precisavam fazer para delas sair.

As instruções vinham na forma do apropriadamente denominado Consenso de Washington: dolorosas receitas, entre elas, liberalização de mercado e consolidação fiscal, impostas como preço do apoio financeiro do Fundo Monetário Internacional (FMI).

Desta vez, a crise começou em Wall Street, deflagrada pela forte queda dos preços das moradias nos EUA. Os países emergentes foram as vítimas, e não os culpados. E a razão para essa inversão de papéis? Eles tinham ingerido o suficiente do remédio recomendado pelo Ocidente.

Uma década atrás, depois que a crise de 1997-98 teve conseqüências devastadoras em algumas das economias mais vibrantes, a Ásia disse "nunca mais". Nunca mais passaria o chapéu quando as coisas ficassem difíceis. Para evitar as regras nocivas do Fundo Monetário Internacional (FMI), os governos ergueriam suas próprias defesas contra a adversidade acumulando reservas em moeda estrangeira.

Essas reservas - atualmente equivalentes a mais de US$ 4 trilhões - financiaram o crédito nos EUA e na Europa. Houve outras fontes de liqüidez, naturalmente, especialmente o Fed e as reservas acumuladas por produtores de energia. Foram também necessários estratagemas financeiros para transformar dívida hipotecária irresponsável em títulos com classificação de crédito AAA. Mas, como disse recentemente uma autoridade chinesa a David Pilling, meu colega no FT: "Os EUA afogaram-se em liqüidez asiática".

Assumir as implicações geopolíticas será tão doloroso para os países ricos quanto pagar o preço interno pelo esbanjamento. A erosão da autoridade moral do Ocidente que teve início com a guerra no Iraque acelerou substancialmente. Os devedores ocidentais já não podem esperar que seus credores ouçam suas lições de moral. E é essa a conseqüência mais abrangente. Um deslocamento do poder econômico mundial para o Oriente tornou-se comum no discurso político. Quase todo mundo no Ocidente hoje fala com assombro sobre o ritmo da ascensão chinesa, da emergência indiana à posição de ator geopolítico, dos papéis crescentes do Brasil e da África do Sul nas relações internacionais.

Mas os países ricos ainda não enfrentaram adequadamente as implicações. Eles podem imaginar compartilhar poder, mas imaginam que as linhas do compromisso seguirão seus termos - imaginam que os países emergentes serão absorvidos - a um ritmo, note bem, à escolha do Ocidente - em conhecidos fóruns e instituições internacionais.

Quando diplomatas americanos e europeus falam de as potências em ascensão tornarem-se participantes responsáveis no sistema mundial, o que querem dizer de fato é que não devem permitir que China, Índia e os demais contestem os atuais padrões e normas. Essa é a atitude que supõe o Benelux conservando uma fração maior do que a China de votos no FMI; e acredita que o Grupo dos Sete principais países industrializados continuam sendo o fórum apropriado para reformular o sistema financeiro mundial.

Eu não tenho inibições quanto a defender os valores do Ocidente, de pregar as virtudes do império da lei, de políticas pluralistas e de direitos humanos fundamentais. Nem de afirmar que, a despeito das turbulências financeiras, um sistema de mercado liberal é a pior opção - exceto quando consideradas todas as outras. A argumentação em defesa de regras mundiais - de que mercados abertos necessitam governança multilateral - não poderia ter sido tornada mais enfática do que pela crise atual. Mas a grande lição é de que o Ocidente já não pode assumir que a ordem mundial será refeita à sua própria imagem. Durante mais de dois séculos, os EUA e a Europa exerceram uma hegemonia econômica, política e cultural sem esforço. Essa era está chegando ao fim.