Título: Governo perdeu chance de fazer ajuste anticíclico
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 20/10/2008, Opinião, p. A12

O governo Lula muito discutiu, mas perdeu a chance de fazer uma política fiscal anticíclica, aproveitando o período de bonança tanto da economia brasileira quanto da mundial. O crescimento acelerado do Produto Interno Bruto (PIB) gerou recordes sucessivos na arrecadação tributária, abrindo ótima oportunidade para as autoridades economizarem recursos e, assim, prepararem o país para momentos difíceis. Infelizmente, não foi o que aconteceu.

No ano passado, as receitas administradas pelo Fisco cresceram 12,19% em termos reais (acima da inflação). Em 2008, mesmo com o fim da CPMF, a arrecadação continua crescendo de forma robusta - 9,49% até agosto, quando comparada ao mesmo período do ano anterior.

Com tanto dinheiro em caixa, o governo poderia ter controlado os gastos de custeio e produzido uma folga para ser usada como impulso para os investimentos públicos nos tempos difíceis, mas preferiu ir por outro caminho. E não foi por falta de aviso. Em 2005, proposta de ajuste anticíclico elaborada pelo Ministério do Planejamento, sob a inspiração do ex-ministro Delfim Netto, um conselheiro importante do presidente, e do economista Fábio Giambiagi, então no IPEA, chegou a ser apresentada ao Planalto, mas foi abortada de forma peremptória pela ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff, que a considerou "rudimentar".

Naquela ocasião, não se previa a mudança de humor do mercado global, nem a devastadora crise financeira mundial em curso. A idéia era aproveitar o fato de que a economia estava entrando num período de crescimento sustentado para acelerar o ajuste fiscal, e assim eliminar o déficit público em seu conceito mais amplo, o nominal, em pouco tempo. Isso teria permitido reduzir mais rapidamente as taxas de juros, criando as condições para aumentar o ritmo de expansão do PIB.

Mas o governo optou pelo caminho mais fácil. Ao aumento da arrecadação sobreveio uma forte elevação de gastos. Em 2003, a despesa primária total da União (excluídos gastos com juros da dívida) chegou a 21,63% do PIB. Em 2007, bateu em 25,24% do PIB - há dez anos, era 15,15% do PIB. Nos últimos meses, parece ter saído de controle - de janeiro a agosto, cresceu 11,5%.

Das despesas que vêm em ritmo de acelerada expansão, os salários do funcionalismo são o destaque. Quando assumiu o governo, o presidente Lula encontrou uma folha de pessoal que consumia, entre vencimentos e encargos sociais, R$ 72,8 bilhões. No ano passado, ela já custava R$ 125,6 bilhões. Recentemente, o governo decidiu abrir de novo os cofres, concedendo aumentos generosos a mais de um milhão de servidores. A conta, segundo estimativa oficial, deverá chegar a R$ 200 bilhões ao fim do mandato de Lula, daqui a dois anos.

Desde o primeiro ano de mandato, o governo gera superávits primários suficientes para pagar parte da despesa com juros e, em conseqüência, reduzir a dívida pública como proporção do PIB. Neste ano, decidiu, inclusive, elevar de 3,8% para 4,3% do PIB a meta primária, uma medida que, tomada antes da eclosão da turbulência financeira, ajuda a fortalecer a posição do Brasil. O esforço, porém, pode ser insuficiente, dada a gravidade da situação.

O principal efeito da crise sobre a economia brasileira foi, até agora, a contração do crédito para empresas e pessoas físicas. Por essa razão, já há companhias anunciando a redução e a suspensão de investimentos, item que mais tem contribuído para a expansão do PIB. Se tivesse feito o ajuste anticíclico, o governo teria, agora, munição para aumentar investimentos públicos, compensando, mesmo que parcialmente, o desaquecimento dos investimentos privados.

Nos últimos dias, integrantes do governo informaram que, mesmo com a crise, está garantido, em 2009, um reajuste real do salário mínimo em linha com a medida provisória editada pelo Executivo que, embora ainda não aprovada pelo Congresso, prevê o reajuste com base no INPC mais a variação do PIB de dois anos anteriores. Isso representará cerca de 11% a 12% de correção do mínimo, com impactos sobre as contas da Previdência e sobre o setor privado num momento de desaceleração da economia. Em vez de financiar investimentos em infra-estrutura e deste modo a geração de empregos e renda, o pequeno esforço fiscal anticíclico deste ano - com a perspectiva de encerrar o exercício com superávit primário de 4,5% do PIB - servirá para pagar a elevação das despesas correntes.