Título: Governo quer unificar regra para compra de terra por estrangeiros
Autor: Basile, Juliano
Fonte: Valor Econômico, 20/10/2008, Brasil, p. A3

O governo quer uma regulamentação única para a compra de terras por estrangeiros no Brasil que inclua situações totalmente distintas, como a aquisição em zonas de fronteira e em regiões consideradas estratégicas para o desenvolvimento do país, como a Amazônia. Ruy Baron/Valor Nelson Jobim: proteção para regiões estratégicas só poderá ser fixada com aprovação de nova emenda constitucional

A determinação de uma regra única partiu da ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff, após uma série de reuniões com vários ministros interessados na questão. O problema é que existem pelo menos três posições distintas sobre o assunto dentro do governo e, com isso, a tendência é não sair nenhuma regulamentação.

A Advocacia-Geral da União (AGU) concluiu, num parecer, que devem existir limitações às aquisições feitas por companhias cujo controle não é de brasileiros. O Ministério da Justiça é contrário a restrições, mas acredita que deveria existir uma diferenciação para as compras realizadas na Amazônia, limitando-as através de lei. O Ministério da Defesa entendeu que, hoje, a Constituição permite a aquisição por empresas estrangeiras e, portanto, nem um parecer da AGU nem um projeto de lei seriam suficientes para resolver a questão. Apesar das diferenças, os dois ministérios estão trabalhando para que seja adotada uma regra única sobre o assunto, conforme determinou a ministra Dilma. A dúvida está entre propor emenda constitucional sobre o assunto, como defendeu o ministro da Defesa, Nelson Jobim, ou enviar um projeto de lei ao Congresso, como propôs o ministro da Justiça, Tarso Genro.

Enquanto os ministérios debatem a melhor forma de regulamentar o assunto, a Consultoria-Geral da União - órgão ligado à AGU - concluiu um parecer impondo restrições para empresas estrangeiras.

O problema chegou para a AGU no ano passado, por causa das discussões envolvendo a nova matriz energética proveniente de biocombustíveis, como a cana-de-açúcar e a mamona. Vários órgãos do governo, como o Gabinete de Segurança Institucional, os ministérios do Desenvolvimento Agrário e da Justiça, a Casa Civil e o Tribunal de Contas da União (TCU), que é órgão do Legislativo, procuraram a AGU para obter uma orientação legal sobre o assunto. Neste ano, as discussões foram retomadas com a crise mundial de alimentos. Em março, integrantes da AGU estiveram em duas comissões do Senado (Agricultura e Meio Ambiente) e relataram a linha geral que estavam desenvolvendo sobre o assunto.

Eles explicaram que a legislação prevê que, em setores considerados imprescindíveis ao desenvolvimento nacional, só empresas de capital nacional poderiam fazer aquisições de terras. Após as audiências, lobistas de companhias estrangeiras buscaram outros órgãos do governo para defender a liberação, mas a AGU manteve a sua posição.

Em setembro, o consultor-geral da União, Ronaldo Jorge Araújo Vieira Júnior, apresentou parecer em que distinguiu quatro tipos de empresas. Primeiro, as empresas 100% nacionais que não teriam nenhum impedimento para comprar terras. Em segundo lugar, as empresas de capital misto que possuem pelo menos 51% de seu capital votante controlado por brasileiros. Essas empresas também não teriam restrições em nenhum setor ou região do país. O problema, segundo o consultor-geral, está em outros dois tipos de empresas: as companhias com 51% ou mais de controle por estrangeiros e as totalmente estrangeiras. Nesses dois casos, Ronaldo concluiu que existem limitações impostas por uma lei de 1971.

A lei nº 5.709, de outubro 1971, prevê que, em setores imprescindíveis ao desenvolvimento, apenas empresas de capital nacional poderiam comprar terras. Isso significa que os negócios com terras brasileiras estariam restritos às companhias que possuem controle efetivo em mãos de brasileiros. Pelo menos 51% do capital votante deve ser de brasileiros. De acordo com o consultor-geral, a lei de 1971 é compatível com a Constituição de 1988 que possui diversos dispositivos nacionalistas, como o artigo 190 que prevê a aprovação de lei para limitar a aquisição de terras por estrangeiros.

Porém, o assunto é tão polêmico que o parecer ainda não foi assinado pelo advogado-geral, o ministro José Antonio Dias Toffoli. Ele entendeu que existem posições distintas no governo e, portanto, preferiu aguardar uma orientação direta do presidente Luiz Inácio Lula da Silva sobre como agir.

Dilma pediu uma regra única após o assunto ser debatido, em reuniões interministeriais, quanto a episódios de aquisições de terras totalmente diferentes. Primeiro, o governo discutiu a compras de terras na fronteira do Uruguai pela companhia sueca Stora Enso. Trata-se da maior fabricante de papel da Europa, que quer mais terras para plantar eucaliptos. O Incra do Rio Grande do Sul foi contrário à companhia que, mesmo assim, comprou 46 mil hectares de imóveis rurais em 11 municípios do Estado. O problema é que, sem uma definição legal, a Stora registrou parte das propriedades em nomes de sócios brasileiros e diretores da companhia.

O outro caso envolve o investidor sueco Johan Eliasch. Em 2003, ele constituiu uma companhia em São Paulo para adquirir terras, a Empresa Florestal da Amazônia. Dois anos depois, já possuía 160 mil hectares na Amazônia, área maior do que a capital paulista. Eliasch alegou que as aquisições foram realizadas para preservar a floresta e fundou uma ONG - a Cool Earth.

A Agência Brasileira de Inteligência (Abin) iniciou uma investigação contra o sueco. Os negócios de Eliasch chegaram ao TCU que determinou ao Incra a realização de levantamento de todas as terras controladas por estrangeiros no país e pediu a adequação da legislação no sentido de proteger a soberania nacional.

Foi por causa de Eliasch que integrantes do governo sugeriram a Dilma uma proposta de proibição da aquisição de terras por empresas de capital estrangeiro, mesmo que nacionais, em regiões consideradas estratégicas. Por outro lado, o caso da Stora Enso sinalizou a necessidade de liberação, já que a empresa quer fazer grandes investimentos no Sul do país e, dessa forma, irá gerar empregos e divisas à região.

Numa reunião, Jobim argumentou que a Emenda nº 6, aprovada em 1995, acabou com a distinção entre empresas brasileiras de capital estrangeiro e aquelas com capital nacional e, ao fazê-lo, liberou os negócios por estrangeiros. Ele defendeu que eventuais proteções para regiões estratégicas só poderiam ser fixadas pela aprovação de nova emenda constitucional, em substituição a anterior. Um técnico do governo sugeriu o envio de projeto de lei, que exige quórum simples para ser aprovada no Congresso e não três quintos dos parlamentares em duas votações na Câmara e no Senado, como ocorre com as emendas. Jobim insistiu na necessidade de emenda, com um argumento de autoridade: "Tu tens seis votos no Supremo?", perguntou ele, que, por dez anos, foi um dos 11 ministros da mais alta Corte do país.

A assessoria do ministro da Defesa informou que Jobim não defendeu a emenda, mas apenas deu uma explicação jurídica sobre o assunto. Segundo o ministro, a definição está com a AGU que, por sua vez, espera pelas ordens do presidente Lula sobre o assunto. Daí, a expectativa de que a regularização deve demorar para sair.