Título: E depois da crise?
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Fonte: Valor Econômico, 21/10/2008, Opinião, p. A12

Na semana retrasada, o mundo observou a quebra de alguns dos principais pilares do sistema financeiro americano, ligados aos mercados de títulos financeiros securitizados. Viu também o governo americano realizar a maior intervenção no mercado financeiro da sua história - terminando com a proposta da compra de ativos financeiros "tóxicos" no valor de US$ 700 bilhões (um total até o momento de US$ 1,1 trilhão!) e o início de uma reestruturação que reverte um processo de liberalização que se iniciou nos anos 70. Apesar da aprovação do pacote - depois de uma semana de acalorados debates num Congresso dividido e com os olhos fixados numa das mais acirradas disputas presidenciais -, os mercados demonstram temor frente ao anúncio de falência de bancos americanos e europeus. A crise está crescendo, as ondas estão subindo. Nesta tormenta, o leitor deve, portanto, estar estarrecido com o título deste artigo. Mas sinceramente acho que este é o momento de pensarmos para além deste tornado. Explico.

Todos já sabemos que esta crise tem origens estruturais que vão além da sua manifestação financeira. Em grandes linhas (mas o diabo está nos detalhes, que não podem ser analisados num artigo curto), a origem estrutural tem a ver com um processo de explosiva expansão e concentração do consumo (de bens e serviços) nos Estados Unidos, que não foi acompanhado pelo aumento da produção e da renda da classe média americana. Do ponto-de-vista do setor real, isto foi possível graças a uma nova divisão internacional do trabalho, no qual alguns países emergentes se especializaram na produção de bens de consumo duráveis e outros em bens primários. Os países emergentes "mais dinâmicos" passaram a investir pesadamente em infra-estrutura (necessária a esta nova divisão do trabalho) e a demandar insumos de outros países em desenvolvimento. O crescimento do consumo americano (e de outras economias desenvolvidas) tem sido, de fato, o pilar do crescimento mundial (são poucos hoje que ainda crêem na tese do "decouplement").

Do ponto de vista financeiro, os desequilíbrios foram em sentido inverso: nos Estados Unidos, a poupança média diminui, e o grau de endividamento privado (e também público) cresciam vertiginosamente. Os déficits comerciais americanos aumentavam, e geraram um crescimento espetacular das reservas dos países emergentes. Por fim, os investimentos diretos passaram a fluir para as economias emergentes.

Tudo isto é sabido e agora também há consenso de que este padrão de consumo e financiamento (que implicava uma enorme alavancagem financeira) e a atual divisão internacional da produção eram insustentáveis.

Isto quer dizer que a crise que temos pela frente deve ter pelo menos três etapas (que em muitos casos deverão se sobrepor). A primeira é a de estabilização financeira; a segunda, a de impactos sobre o nível de consumo e demanda agregada no epicentro; e a terceira, os impactos secundários sobre os níveis de comércio e produção mundial.

Estamos na primeira, com o pacote em discussão nos EUA. Se não fosse aprovado, o risco sistêmico realmente seria incontrolável. Se for aprovado, pode mitigar o risco de uma crise de solvência nas instituições financeiras nacionais, e de muitas internacionais (devido ao grau de exposição a títulos americanos, alavancagem, interdependência acionária e patrimonial das instituições financeiras atuando em distintos âmbitos nacionais).

Mesmo que aprovado o pacote, entraremos num quadro de redução de alavancagem - seja porque há um aumento da aversão ao risco (ou preferência pela liquidez) generalizada, ou seja, os investidores individuais e institucionais não têm apetite para comprar ativos que são a base do financiamento do consumo (hipotecas, financiamento de carro, cartão de crédito etc); seja porque algumas das "instituições-pilares" desta alavancagem ou estão falindo, ou se transformando em holding bancárias. Como o grau de endividamento privado é alto, como a poupança das famílias é negativa e como o desemprego está subindo, o consumo deve cair. O governo americano poderia usar os mecanismos tradicionais de expansão fiscal, mas também o déficit e grau de endividamento são altos. Até o candidato democrata disse recentemente, no primeiro debate com seu opositor republicano, que precisaria reduzir seus planos de gastos para "ajustar-se" ao dreno feito pelo pacote de estabilização.

Esta segunda etapa, por si só, já vai gerar uma retração da demanda por importação, afetando em cadeia as economias emergentes. Mas, supondo o sucesso da primeira fase, podemos ter uma crise do tipo japonesa, ou seja, dura, mas organizada.

A terceira etapa, relacionada ao impacto sobre a economia global, vai depender da capacidade das economias mais dinâmicas - agora as chamadas emergentes - de ampliarem substancialmente o consumo e investimento doméstico e reconduzirem rapidamente sua oferta agregada para saciar o consumo interno. Isto por si só é complicado, mas em um ambiente de abertura comercial e financeira implica desafios significativos de balanço de pagamentos. Aqui, quanto maior o volume de reservas e quanto maior a disposição de utilizá-las, maiores as possibilidades de manter o crescimento.

De uma maneira geral, não consigo imaginar como se pode avançar nesta segunda fase sem políticas internas de redistribuição de renda, de substituição de importações, de expansão de investimentos em infra-estrutura e em educação. Também creio que serão necessários mecanismos de coordenação de política macroeconômica bastante significativos para evitar um mix explosivo - ou seja, que as políticas monetária e fiscal sejam afinadas no sentido de criar mais espaço de expansão dos investimento públicos. Tudo isto com mecanismos claros (alguns de exceção) para evitar que a expansão da demanda gere problemas de balanço de pagamentos.

E o Brasil? A probabilidade de sermos adversamente afetados pelo este tsunami é grande - por mais que nosso "barco" esteja bem mais sólido devido a uma política macroeconômica que buscou reduzir nossa exposição externa. Mas, dentre os países emergentes, o Brasil se encontra em posição privilegiada para embarcar na "terceira etapa" que citamos acima: o mercado doméstico tem crescido de forma sustentada, há muito investimento que não tem impacto direto sobre a balança comercial (em infra-estrutura e educação, por exemplo) a ser realizado e temos um colchão de reservas sólido.

Ainda mais. Como o nosso sistema de financiamento ainda está basicamente calcado no crédito, o grau de alavancagem é baixo, e portanto nosso sistema financeiro é sólido e pode expandir solidamente (ou seja, sem expansão da inadimplência) - conquanto estejamos num cenário de crescimento de produto e renda sustentado. Pode-se ampliar o espaço para expansão dos bancos públicos com uma devida capitalização. E, no que tange ao setor bancário privado, creio que há escopo para políticas a expansão dos prazos e tipos de financiamento (mas especificamente o que fazer merece alguns outros artigos).

Recentemente, em uma entrevista ao jornal "O Globo", eu disse que tinha razões "reais" para o otimismo. Eu costumo dizer que o Brasil está na infância das economias de consumo de massa e temos muito que amadurecer. Em uma economia continental, com recursos naturais, humanos e num processo continuado de inclusão social, ao sermos cuidadosos com esta crise financeira não devemos perder de vista os lados "reais" para o otimismo. Agora, mais do que nunca, é preciso pensar como navegar estes mares que serão, não tenham dúvidas, extremamente tumultuados e cheios de ondas; mas temos de fazê-lo sem perder de vista o horizonte.

Rogério Studart é diretor-executivo do Brasil, Colômbia, Equador, Filipinas, Haiti, Panamá, República Dominicana, Suriname e Trinidad Tobago no Banco Mundial.