Título: A difícil tarefa de criar um rebanho diferenciado e poder exportar à UE
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 21/10/2008, Especial, p. A14

Lado a lado no cocho, os bois, já perto da idade de abate, parecem animais como outros quaisquer. Mas não são. Pode-se dizer que os animais da fazenda Bonança, em Pereira Barreto, no interior paulista, fazem parte da "elite" do rebanho brasileiro, já que foram "aceitos" pela União Européia. No fim de setembro, a Bonança, que pertence à Damha Pecuária, entrou na lista de fazendas certificadas pelo bloco para fornecer bovinos para abate e exportação de carne in natura ao mercado europeu. E isso diferencia seu rebanho, permitindo à empresa obter ágios de 15% no preço de venda da arroba. Gustavo Lourenção / Valor Maria Stela Eugênio Damha, diretora da Damha Pecuária, reconhece que "nada no processo de certificação é fácil"

A lista, que tem apenas 447 fazendas em todo o Brasil, foi criada pela UE no início deste ano, quando o bloco alegou falhas na rastreabilidade do gado bovino no país e definiu que somente um grupo restrito de propriedades poderia vender animais aos frigoríficos que exportam carne bovina ao seu mercado. E o bloco caprichou nas exigências.

A Bonança foi uma das primeiras fazendas paulistas a entrarem na lista, depois que a UE decidiu reabrir seu mercado ao Estado de São Paulo, fechado desde os casos de febre aftosa no Mato Grosso do Sul e Paraná, há três anos.

Além da já conhecida exigência de que todos os animais das propriedades sejam identificados com brincos - cujo número, em código de barras, deve estar registrado na base nacional de dados (BND) do Sisbov (sistema de rastreabilidade do gado), a UE também é bastante rigorosa na checagem de documentos que tratam da movimentação de animais, como notas fiscais e Guias de Trânsito Animal (GTAs).

Conforme Wander Bottura, gerente-geral de produção da Damha Pecuária, todas essas informações têm de estar coesas. "Todos os dados que estão na nota e na GTA têm de bater com os da base de dados", explica ele.

Mais um sinal do rigor europeu: o relatório da auditoria nas fazendas tem cerca de 80 questões a serem respondidas. É a partir dessas respostas que os auditores definem se a fazenda pode ser certificada. Chama a atenção o grande número de questões de fundo burocrático, como: "O formulário de comunicado de sacrifício, morte natural ou acidental de animais está devidamente preenchido?".

O longo "check list" inclui ainda a conferência com um leitor ótico da identificação (código de barra nos brincos) de, no mínimo, 300 animais, no caso de propriedades com mais de 300 cabeças - a Bonança tem 12,5 mil bois em confinamento atualmente. É necessário verificar, ainda, a presença dos brincos de identificação em 600 animais. O brinco, aliás, é quase um capítulo à parte nas demandas da UE. Se um único bovino em toda a fazenda estiver sem brinco, a propriedade fica fora da lista. "A perda de brinco é o que mais preocupa", reconhece Bottura.

Não é incomum que isso ocorra numa propriedade, já que os animais da raça nelore, rústicos, muitas vezes se enfrentam com cabeçadas e o brinco cai. Nesse caso, uma segunda via do brinco para identificação é solicitada ao Ministério da Agricultura.

Durante a auditoria, a validade dos medicamentos, a temperaturas de vacinas, os documentos de vacinação e a alimentação do gado também passam por checagem.

Apesar da burocracia - a auditoria, no caso da Bonança, levou dois dias -, Octávio Pereira Lima, gerente administrativo jurídico da Damha Pecuária, afirma que as exigências são coerentes.

Maria Stela Eugênio Damha, diretora da empresa, reconhece que "nada no processo [de certificação] é fácil", mas considera que as dificuldades são maiores para as fazendas que nunca fizeram identificação de seus animais.

A Bonança (recria e engorda de gado) já o faz há dez anos, quando criou um sistema que chamou de "Gado Satélite". Segundo Lima, o sistema foi criado para controlar o fluxo dos animais e medir a eficiência da fazenda. Controlar o fluxo é fundamental na Bonança, para onde converge o gado bovino das demais fazendas do grupo para engorda. São três em São Paulo - Sud Menucci, onde tem recria; Itapura, recria, e Mirandópolis, com cria e recria. Há ainda duas fazendas de cria e recria em Goiás (Serranópolis e Piranhas).

A pecuarista observa que muitas fazendas tradicionais fazem todo o controle sanitário do rebanho, mas nunca pensaram em identificar o animal. Além da identificação individual não ser um procedimento corriqueiro, o próprio tamanho dos rebanhos das fazendas no Brasil acaba dificultando o procedimento. Na Europa, onde o sistema também é adotado, as propriedades são pequenas, observa Maria Stela.

O investimento na certificação do rebanho para atender o mercado europeu tem custo, mas rende um ágio de 15% aos animais da Bonança, segundo a pecuarista. Segundo Octávio Pereira Lima, "ainda é difícil saber quanto a rastreabilidade pesa no custo de produção" do gado - na primeira semana de outubro, o custo era de R$ 70 por arroba.

Para Lima, "se não houver incentivo [ágio] fica difícil fazer [a rastreabilidade]". Por outro lado, diz Maria Stela, sem certificação há deságio na arroba. Em sua visão, o rigor da UE com o Brasil não surpreende. "A competitividade do Brasil é muito grande. Com isso, as exigências são maiores". (AAR)