Título: Por quem os sinos dobram
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 23/10/2008, Opinião, p. A12

O avassalador desastre financeiro que se abateu sobre as economias desenvolvidas pode ser o prenúncio, no pior cenário, de uma crise de proporções devastadoras. Mesmo que este cenário de catástrofe não se materialize, a crise cobrará um preço relativamente alto em termos de queda no ritmo de crescimento da economia mundial nos próximos meses, com impactos negativos na renda, emprego e bem-estar. Esta súbita redução na taxa de expansão marca o fim de um longo período de crescimento da economia global, que foi acompanhado, ao mesmo tempo, por um comportamento extremamente benigno da taxa de inflação, tanto no mundo desenvolvido, quanto nos países emergentes. Esta combinação de alto crescimento com baixa inflação foi chamada, por muitos economistas, de "A Grande Moderação", o que agora soa pateticamente ingênuo, à luz da crise financeira que começa a reduzir as decisões de consumo e de investimento das famílias e das empresas, ou seja, afetando a chamada economia real. Entretanto, durante aquele período de euforia, estavam sendo criadas as condições para a enorme expansão de crédito, fonte original da bolha imobiliária americana e da epidemia que, segundo a expressão de Ben Bernanke, se espalhou pelos mercados e países à velocidade da luz.

Não se pretende discutir as possíveis razões pelas quais a Grande Moderação se transformou na ante-sala da Grande Recessão. O objetivo é mais modesto e tem a ver com a hipótese de que uma parte da explicação está relacionada com a adoção quase que generalizada pelos principais bancos centrais, de um regime de política monetária que se convencionou chamar de metas inflacionárias. De fato, a começar pela Nova Zelândia, no inicio da década de noventa do século passado, este regime foi sendo gradualmente implementado por outros países desenvolvidos e em desenvolvimento, de tal maneira que ele se transformou em um modelo representativo do que se poderia chamar de melhores práticas internacionais de política monetária. Este regime recebeu também o apoio dos principais organismos financeiros internacionais e a sustentação teórica dada pelos mais reputados economistas acadêmicos. Entre as economias desenvolvidas, o Federal Reserve Bank foi o único Banco Central a não adotar explicitamente uma meta inflacionária. Isto possivelmente se deveu a duas razões: de um lado, à resistência do todo-poderoso Alan Greenspan, que dirigiu o Federal Reserve de 1987 até 2006 e, de outro, ao duplo mandato conferido legalmente àquela instituição de assegurar a estabilidade de preços e máximo nível de emprego.

O sucesso do regime de metas em reduzir o nível e a volatilidade da taxa de inflação pode ter sido uma das causas de sua rápida adoção por muitos países. A condução da política monetária parecia também um exercício tecnicamente simples, pois consistia em compatibilizar um único objetivo de política monetária (a estabilidade de preços) com um instrumento de atuação dos bancos centrais (a taxa de juros de curto prazo, que pode ser controlada pelas autoridades monetárias). Além disso, outros atributos facilitavam a sua disseminação: transparência, "accountability" e exigência de uma relativa independência do Banco Central em relação ao Poder Executivo.

Uma das grandes lições da crise atual é que estabilidade monetária não garante a estabilidade financeira, aqui entendida no sentido proposto por Andrew Crockett, antigo diretor do Banco de Compensações Internacionais (BIS), como estabilidade das instituições financeiras e do mercado financeiro. A primeira significa uma situação de confiança em que as maiores instituições possam cumprir suas obrigações contratuais sem interrupção ou sem auxílio de fora. A estabilidade dos mercados ocorre quando os agentes têm confiança de que os preços refletem os fundamentos dos ativos e que estes não mudam substancialmente no curto prazo, sem mudanças nos fundamentos. A crise atual mostra à saciedade que as grandes instituições financeiras privadas estão sendo protegidas por uma rede de segurança oficial e que a situação caótica dos mercados financeiros globais eliminou, ao menos transitoriamente, a sua capacidade de formar os preços dos ativos financeiros.

Alguns analistas argumentarão que a crise decorreu de falhas na regulamentação e na supervisão dos mercados financeiros, de capitais e de derivativos pelas autoridades reguladoras. Não há dúvidas de que esses argumentos têm suas justificativas, levando-se em conta o comportamento leniente daquelas autoridades, sobretudo nos Estados Unidos. Mas o efeito dessa leniência poderia ter sido amenizado se os Bancos Centrais tivessem ampliado o foco de sua atenção para os preços de outros ativos, ao invés de se concentrar unicamente no comportamento da variação em um único conjunto de preços, a taxa de inflação, medida como preços correntes de bens e serviços adquiridos pelos consumidores finais. Esta ampliação da chamada "função de reação do Banco Central" para incluir variáveis financeiras ou preço de ativos certamente torna mais difícil as decisões da autoridade monetária. Mas, de outro lado, reduz o risco dessas hecatombes financeiras. O contribuinte humildemente agradece, pois não acha justo do ponto de vista ético ter que pagar as contas dos surtos futuros de exuberância irracional, os quais provavelmente voltarão a ocorrer.

Alkimar R. Moura é professor de economia da FGV/SP.