Título: A gente não quer só comida
Autor: Couto, Rodrigo
Fonte: Correio Braziliense, 10/02/2010, bRASIL, p. 8

Para tentar reduzir o número de miseráveis que vivem no país, a alimentação é incluída no artigo 6º da Constituição Federal. A medida, apesar de comemorada por militantes de ONGs e parlamentares, não é bem recebida por especialistas

Mãe de seis filhos, Hercília enfrenta dificuldades para se alimentar e sonha entrar em um supermercado para poder comprar de tudo: ¿Mas está muito distante disso acontecer¿

Ana Lúcia recebe R$ 130 de um programa local: ¿Se não fosse pelos meus vizinhos, não sei o que seria¿

Mesmo com a implantação do Bolsa Família em 2003 ¿ principal programa de transferência de renda do governo Lula, que atende pelo menos 48 milhões de pessoas em todo o país ¿, quase 16 milhões de brasileiros ainda vivem em condições de extrema pobreza, segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra Domiciliar (Pnad) de 2008. Uma das tentativas para reduzir o número de miseráveis que vivem no território nacional é a inclusão da alimentação entre os direitos sociais previstos no artigo 6º da Constituição Federal. Comemorada por militantes de organizações não governamentais, parlamentares e integrantes do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), a medida é vista com desconfiança por especialistas ouvidos pelo Correio.

A inclusão da alimentação entre os direitos sociais ¿ educação, saúde, trabalho, moradia, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância, assistência aos desamparados ¿ já previstos na Constituição, é vista com desconfiança pelo professor titular de direito constitucional da Universidade de São Paulo (USP) Elival da Silva Ramos. ¿Eles (os políticos) acham que basta colocar no papel para tornar realidade. Não é bem assim que funciona. Em vez de aprovar uma emenda constitucional como essa, deveria haver um grande esforço para uma ampla reforma política. É com a mudança das práticas políticas que um país pode avançar em todas as áreas¿, ressalta. Na opinião do professor universitário, a Constituição é rica em normas de finalidade e pobre na viabilização dos meios. ¿Além disso, a concessão dos direitos sociais depende de peças orçamentárias e não de algo previsto na Carta Magna. Isso não vai provocar grandes mudanças.¿

Ao contrário do professor da USP, o presidente do Consea, Renato Maluf, diz que a inserção da alimentação entre os direitos sociais tem importância imediata. ¿Agora, a alimentação passa a ser uma questão de Estado, e não diretriz de um governo. Ao lado da educação, da saúde e da moradia, o direito à comida também agora está inscrito na Carta Magna¿, observa. Apesar de comemorar o novo texto constitucional, baseado na Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 21/01, de autoria do senador Antônio Carlos Valadares (PSB-SE), Maluf reconhece que a implantação será gradativa. ¿E na medida em que forem implantadas outras políticas públicas para combater esse grave problema¿, admite.

Má alimentação Sem emprego fixo, Ana Lúcia Soares, 49 anos, é uma das 16 milhões de pessoas que não têm acesso ao Bolsa Família. Ela se vira para viver com os R$ 130 que recebe de um programa local. Com esse valor, ela diz que compra comida, remédios para diabetes, pressão alta e gás de cozinha, e ainda paga a conta de água. ¿Nem sempre o posto de saúde tem os medicamentos que preciso, por isso, às vezes, deixo de fazer uma feira. O que ganho não dá nem para duas semanas. Se não fosse pelos meus vizinhos, não sei o que seria, pois meus filhos também são pobres e meu ex-marido desapareceu¿, conta a moradora da casa de madeira de apenas um cômodo, erguida dentro do pequeno lote da quadra 202 de Itapoã, região administrativa próxima a Brasília com alto índice de violência e de pobreza.

Em troca de comida, Ana Lúcia faz serviços domésticos para não passar fome. ¿Lavo roupa e arrumo casa para colocar comida em casa.¿ A geladeira e o fogão, doados por amigos, quase não são usados por ela. ¿Só tenho um pedaço de carne que ganhei domingo passado e um litro de leite. No armário, o que tenho é polvilho, buriti e fubá¿, mostra. Mesmo sem entender como funcionam os direitos constitucionais, Ana Lúcia espera que a nova lei possa mudar sua vida. ¿Aguardei 29 anos por esse lote que ganhei no ano passado, por isso tenho fé que as coisas possam melhorar.¿

Presidente da Frente Parlamentar de Segurança Alimentar e Nutricional, o deputado Nazareno Fonteles (PT-PI) acredita que o país deu um grande passo. ¿Esta era uma lacuna de mais de 20 anos que havia na Constituição¿, destaca. Em sua avaliação, a inclusão da alimentação entre os direitos sociais não deve aumentar o número de programas sociais. ¿Acredito que deve haver um aperfeiçoamento para incluir quem ainda está fora¿, acrescenta.

Já para a integrante do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) e da Ação Brasileira pela Nutrição e Direitos Humanos (Abrandh) Elisabetta Recine, a aprovação da Emenda Constitucional nº 64, que incluiu a alimentação entre os direitos sociais, não muda nada, mas é um importante instrumento de pressão junto aos governos federal, estaduais e municipais. ¿É uma importante conquista porque torna explícito e oficial esse direito que deve ser garantido a todos.¿

Esperança Mãe de seis filhos, Hercília Vital Pereira, 46 anos, nunca passou fome, mas enfrenta dificuldades para se alimentar. Acompanhada das netas Camila, 2, e Graziele, 1, a diarista, que não tem renda fixa ou recebe qualquer benefício do Estado, diz que o grande sonho é entrar em um supermercado e comprar tudo o que tem vontade. ¿Mas, infelizmente, está muito distante disso acontecer. Quando tenho dinheiro para comprar feijão, falta para a carne e o arroz.¿ De mudança para o Itapuã, depois de viver por seis anos numa área irregular do Varjão, região administrativa próxima a Brasília, a família de Hercília começou ontem a montar pedaços de madeira para dar forma à sua casa também na quadra 202. Ainda com os móveis fora de casa, a diarista espera que os filhos e os netos possam se beneficiar da nova lei. ¿Não sei se terei acesso, mas vou torcer para minha família conseguir.¿

Novo texto Aprovada pelo Congresso Nacional no último 3 de fevereiro, a Emenda Constitucional nº 64 acrescentou a alimentação entre os direitos sociais fixados no artigo 6º da Constituição Federal. Desde o dia 5, data que o Diário Oficial da União (DOU) publicou a promulgação, o novo texto da Carta Magna passa a ser o seguinte:

¿Artigo 6º. São direitos sociais a alimentação, a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.