Título: Zona do perigo do real
Autor: Tenani , Paulo
Fonte: Valor Econômico, 29/10/2008, Opinião, p. A7
As notícias não são de forma nenhuma positivas. Mas, com a crise financeira global, aqueles fundamentos que determinam o comportamento da moeda brasileira já se deterioraram de tal maneira que uma bolha especulativa no mercado de câmbio é uma possibilidade que não pode mais ser descartada. Não que a depreciação recente do real seja resultado de uma bolha especulativa. Pelo contrário, ela pode ser plenamente justificada pela deterioração dos fundamentos da moeda brasileira e por algumas variáveis técnicas (de curto prazo). Porém, de agora em diante, os fundamentos do real encontram-se em uma região de dinâmica particularmente perigosa, onde os riscos de a taxa de câmbio adquirir vida própria e depreciar-se independentemente dos fundamentos podem aumentar rapidamente.
Na verdade, todas as variáveis fundamentais, sejam elas oriundas do mercado de ativos ou do mercado de bens, apontam na direção de um real mais fraco. Pelo lado do mercado de ativos, a situação é crítica. Devido à diminuição do crédito global, a taxa de Risco Brasil saltou para 6% ao ano, de um mínimo de 1,6% em 2007, elevando as taxas de juros em dólares da dívida externa soberana brasileira - os chamados "yields" - para acima de 9%. Nestas circunstâncias, e aqui vem um detalhe curioso, uma Selic a 13,75% é insuficiente para compensar por todos os custos e riscos de investir na moeda brasileira. É uma situação que está em forte contraste com aquela que o Brasil vivenciou até julho de 2008, quando os "yields" estavam na casa dos 6% e uma Selic de 13,75% compensava generosamente o risco cambial. Pois este cenário mudou radicalmente. Como os "yields" em 10% ao ano, os fundamentos do real entraram na zona do perigo da taxa de câmbio, onde um movimento especulativo que dê vida própria à moeda brasileira não pode mais ser descartado. Esta dinâmica é ainda mais prejudicada pela natureza da crise atual, em que os bancos estão fragilizados e o Banco Central do Brasil talvez encontre limitações para aumentar suficientemente a taxa juros. A moeda brasileira vive, neste sentido, um momento bastante delicado.
Mas existe uma boa notícia, pelo menos em comparação com a crise de 2002. A taxa de juros real de equilíbrio - aquela que resulta, por arbitragem, destes "yields" próximos a 9% - ainda permanece compatível com uma dinâmica da dívida pública estável. Ou seja, com "yields" a 9% ao ano, uma relação dívida/PIB de 40%, crescimento econômico de 3% ao ano e um superávit primário de 3,75% do PIB, a dinâmica da dívida pública deve permanecer estável no Brasil. Além do mais, a dinâmica de transição - aquela que resulta da desvalorização cambial - é altamente favorável para a relação dívida/PIB. O que acontece é que agora, com 100% da dívida líquida denominada em reais, uma desvalorização cambial, enquanto aumenta o PIB nominal (através da inflação), mantém também a dívida líquida inalterada. Neste sentido, a recente depreciação do real deve, nos próximos meses, materializar-se em uma relação dívida/PIB abaixo dos 40% do PIB. Portanto, enquanto uma bolha especulativa no mercado de câmbio é uma possibilidade a ser considerada, o mesmo não ocorre com a Taxa de Risco Brasil. Ou seja, a experiência de 2002, com duas bolhas especulativas - uma no câmbio e outra no risco - realimentando-se mutuamente é, desta vez, uma impossibilidade.
Uma segunda força importante, vinda do mercado de ativos, também aponta na direção de um real mais fraco: a movimentação do dólar no mercado global. Na verdade, até o primeiro trimestre deste ano, a maior parte do ajuste do déficit em conta corrente americano ocorreu por meio da depreciação do dólar perante as moedas de taxas flexíveis, sobretudo o euro e a libra esterlina, mas também o real. Tanto o PIB real dos Estados Unidos quanto as moedas asiáticas - todas com câmbio fixo ou controlado - quase não contribuíam para o ajuste da conta corrente, que acabou, portanto, ocorrendo mais do que proporcionalmente por meio da depreciação do dólar perante as moedas flexíveis. Este "overshooting" do euro, da libra e do real já está no meio de seu processo de reversão. Na verdade, com os Estados Unidos entrando em recessão, e, portanto crescendo menos que a economia mundial, o lado real da economia americana finalmente veio em socorro do dólar no ajuste do déficit em conta corrente. O mesmo ocorre com as taxas de câmbio dos países asiáticos que, devido a uma inflação desconfortavelmente alta, já estão também se apreciando em termos reais. Assim, na medida em que o PIB real dos Estados Unidos e as taxas de câmbio da Ásia começaram a contribuir com o ajuste da conte corrente americana, aquela pressão excedente sobre as moedas flexíveis - que até agora fizeram a maior parte do ajuste - passa a se extinguir. Portanto, no atual cenário global, o dólar deve continuar a se apreciar perante o euro, a libra esterlina e o real, enquanto se deprecia perante as moedas asiáticas. Ou seja, mais uma força fundamental oriunda do mercado de ativos apontando na direção de um real mais fraco.
Quanto aos fundamentos do real vinculados ao mercado de bens, em termos da paridade do poder de compra, o Brasil há muito deixou de ser um país barato e, mesmo com a depreciação recente, a moeda brasileira pode ainda estar 20% acima do seu valor justo. Isto não é um cenário confortável para um país cuja baixa produtividade não lhe permite, pelo menos durante muito tempo, deixar de ser um país barato. O índice BIC Mac, da revista "The Economist", ilustra este ponto. Segundo o índice, uma taxa de câmbio a 2,10 BRL/1USD seria aquela que equalizaria o preço do Big Mac no Brasil ao dos Estados Unidos. Mas, ajustando pela produtividade, quanto um Big Mac no Brasil deveria custar a menos que nos Estados Unidos? É justamente este o dilema do Brasil: sem ganhos de produtividade, o país esta destinado a ter um câmbio consideravelmente mais fraco.
Ainda em termos do mercado de bens, nos últimos 12 meses, a conta corrente brasileira saltou de um superávit de 0,56% do PIB, em setembro de 2007, para um déficit de 1,64% do PIB em setembro de 2008 - ou seja, uma variação de 2,2 pontos percentuais em apenas um ano. Nesta velocidade, um déficit em conta corrente de 3% do PIB em 2009/2010, acompanhado de um déficit na balança comercial, é uma possibilidade concreta. Estes são números preocupantes, especialmente quando levamos em consideração a queda de 40% no preço das commodities ocorrida desde Julho. Alguns cálculos são ilustrativos. Com um déficit em conta corrente na direção de 3% do PIB e uma propensão marginal a importar de 10% e 50% do PIB de bens transacionados internacionalmente, qual a taxa de câmbio que eventualmente traria este déficit de volta ao equilíbrio? Talvez 3.0 BRL/1USD?
Dadas todas estas forças, o cenário para o real brasileiro é de apreensão. Não apenas todas as variáveis fundamentais apontam na direção de um real mais fraco como também os fundamentos do real se deterioraram para dentro da zona do perigo no mercado de ativos - onde a existência de uma bolha especulativa no mercado de câmbio não pode mais ser descartada. Dada a natureza da crise financeira global - que talvez limite o poder do Banco Central brasileiro para aumentar a taxa de juros - o que irá dar sustentação ao real?