Título: América Latina e seu desafio fiscal
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 28/10/2008, Opinião, p. A13

Vivemos tempos incertos mas, mesmo assim, fascinantes para a América Latina. Há apenas uma década, as economias da região haviam sucumbido num abrir e fechar de olhos a uma crise financeira como a atual. Os efeitos da tormenta certamente estão se fazendo sentir e deverão se aprofundar em 2009, exatamente como nas demais economias emergentes, mas sem a dramaticidade com a qual as economias latino-americanas nos haviam acostumado.

Um elemento chave desta capacidade latino-americana de ludibriar o temporal financeiro melhor do que no passado reside na boa ancoragem fiscal das economias regionais, que permite uma maior resistência aos choques externos. Apesar disto, o singular da política fiscal é que ela oferece um exemplo do amadurecimento progressivo das políticas econômicas em boa parte da América Latina, amadurecimento que dará bons retornos em momentos difíceis, como os que se avizinham.

De acordo com o nosso novo relatório "Perspectivas Econômicas da América Latina 2009", do Centro de Desenvolvimento da OCDE, a maioria dos governos latino-americanos (sempre há exceções) têm tomado durante os últimos anos medidas fiscais adequadas para enfrentar um contexto crítico como o atual.

Entre os avanços, foi obtida uma melhora significativa na gestão da dívida pública, o déficit fiscal foi rebaixado e foram adotadas iniciativas importantes de responsabilidade fiscal, como a criação de fundos de estabilização. A região foi também pioneira em inovações fiscais que abrangem desde modalidades especiais de transferência condicional de dinheiro em espécie, a interessantes projetos de orçamentos participativos.

Apesar do já conquistado, resta muito caminho adiante. A tormenta atual desencadeada nos países desenvolvidos só agrava a urgência de tomar providências, embora também nos leve a lamentar o tempo desperdiçado durante estes últimos anos de bonança, agora infelizmente atrás de nós. Nossa análise dos sistemas tributários latino-americanos reconhece os avanços, porém realça também as muitas deficiências que a questão fiscal continua carregando na região.

Por exemplo, o índice de volatilidade das receitas públicas continua elevado e, em especial, a estrutura de arrecadação demasiado regressiva: as receitas dependem excessivamente de fontes não tributárias, como as tarifas sobre exportação e exploração de recursos naturais, todos estes submetidos às volatilidades que estamos presenciando agora, e dependem também de impostos indiretos, que oneram o consumo. Pelo contrário, os impostos sobre a renda pessoal, que costumam ser muito mais progressivos, por tributarem segundo o nível de receitas, contribuem com apenas 4% do total de receitas fiscais da América Latina, ante 27%, nos países da OCDE.

No campo do gasto público, o panorama também oferece muita margem de melhora. Entre 1990 e 2006, o gasto público representou 25% do PIB na América Latina, o que contrasta com os 44% alcançados nos países da OCDE. Menos dinheiro arrecadado é obviamente sinônimo de menos dinheiro para gastar, embora nosso relatório não coloque tanta ênfase na quantidade, e sim na qualidade. A comparação de rendimento estudantil no Chile e México com países que gastam o mesmo por estudante, como Lituânia, é ilustrativa de que os governos latino-americanos continuam gastando pouco nas políticas de maior impacto sobre a aprendizagem e os resultados, como o número de horas que os alunos dedicam às suas aulas, ou à melhora nas políticas de admissão dos centros educativos.

Toda reforma que pretenda promover a qualidade fiscal nos países da América Latina deve levar em conta estes problemas e propor soluções que permitam explorar ao máximo o potencial da política fiscal como motor do desenvolvimento. Os sucessos fiscais são colocados à prova especialmente em contextos difíceis como o atual, e é exatamente agora que convém ressaltar como a política fiscal pode contribuir para um crescimento econômico que não dê as costas à eqüidade. Situar as políticas fiscais que promovem o crescimento e a igualdade pelo menos no mesmo nível que as destinadas a estabilizar a produção e os preços é decisivo.

Uma política fiscal baseada na eqüidade e na efetividade pode e deve constituir o melhor antídoto contra o caudilhismo fiscal do qual ainda padecem muitos sistemas latino-americanos e que explica os baixos níveis de legitimidade fiscal que encontramos há um ano, quando publicamos o nosso relatório anterior.

Se os cidadãos tiverem certeza de que seus governos arrecadam de maneira justa e gastam adequadamente, estarão mais dispostos a cumprir suas obrigações fiscais, o que por sua vez se refletirá positivamente na própria legitimidade democrática. Níveis elevados de legitimidade fiscal ajudam a consolidar a confiança da cidadania nas instituições públicas.

Pelo contrário, uma sociedade desigual, na qual os bens públicos são escassos, de baixa qualidade e na qual a pressão tributária não corresponde ao nível de receitas, é um sistema em que a desconfiança em relação às instituições é maior. A política fiscal, com seus desafios e oportunidades, pode e deve ser um dos eixos desse diálogo sobre como a América Latina pode avançar na sua agenda de desenvolvimento e consolidação democrática.

Injetar maior progressividade nos gastos é, afinal, também a história da democracia. Sua consolidação caminha de mãos dadas com uma maior legitimidade fiscal que só se pode obter arrecadando mais, mas, acima de tudo, gastando melhor, quer dizer, não obrigatoriamente mais, e sim de maneira mais eficiente e mais progressiva, de modo a alcançar assim as populações mais pobres da região, que serão inevitavelmente as que novamente sofrerão mais o impacto da atual crise financeira e macroeconômica global.

Javier Santiso é diretor do Centro de Desenvolvimento da OCDE