Título: Brasil na contramão
Autor: Fleck, Isabel
Fonte: Correio Braziliense, 10/02/2010, Mundo, p. 16

Teerã processa urânio a 20% e desperta a ira de países do Ocidente. Governo brasileiro defende direito ao uso pacífico da energia atômica

Enquanto as potências ocidentais endurecem as críticas contra o enriquecimento de urânio a 20% no Irã, que teve início ontem na usina de Natanz, o governo brasileiro mantém uma defesa orquestrada do ¿diálogo direto¿ com o país e o repúdio ao uso de sanções contra Teerã. Tanto o ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, quanto o da Defesa, Nelson Jobim, reafirmaram ontem que a República Islâmica tem o direito de desenvolver um programa nuclear para fins pacíficos. Amorim chegou a insinuar que a Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) não se esforçou o bastante para negociar com o Irã.

¿Se o presidente (Mahmud) Ahmadinejad chegou a anunciar publicamente que eles estão dispostos a entregar urânio e receber o combustível depois, então acho que o diretor da AIEA tem que ir lá checar para ver como isso vai ser feito e onde está a dificuldade. Eu não creio que isso tenha sido feito¿, afirmou o chanceler brasileiro. Segundo Amorim, não adianta ¿fazer uma proposta e ficar esperando que a outra parte chegue até exatamente o que você propôs¿. Ele argumentou ainda que o anúncio do enriquecimento a 20% ¿não muda em nada¿ a situação, já que o país levará tempo para conseguir produzir o urânio a essa porcentagem.

O ministro da Defesa lembrou que o enriquecimento de urânio a 20% é necessário para a produção de medicamentos e alimentos e que a geração de energia elétrica depende de um processamento a apenas 5%. ¿Nós já chegamos no Brasil a 5% para as nossas usinas nucleares de Angra¿, disse, após sair de um evento no Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Jobim também reforçou a ¿tradição brasileira de resolver as coisas no diálogo¿. ¿O Brasil não é contra ninguém. A nossa teoria é sentar à mesa e conversar¿, afirmou.

Amorim, inclusive, disse acreditar que ¿ainda há campo para negociar com base na proposta feita pelo Ocidente¿. ¿É preciso que seja um diálogo direto e o Brasil está disposto a ajudar nisso. Evidentemente, tem que haver disposição das partes principais¿, declarou. Para ele, a aplicação de sanções ¿trará, como sempre, mais prejuízos para os mais pobres, os mais fracos¿. ¿No processo que aconteceu com o Iraque, eu vi muito sofrimento do povo iraquiano. A mortalidade infantil no Iraque aumentou enormemente e vi que isso (as sanções) não teve nenhum efeito na realidade com Saddam Hussein¿, afirmou.

Além do Brasil, apenas China e Turquia ¿ também membro não permanente do Conselho de Segurança da ONU ¿ destoam da comunidade internacional, que clama por uma maior pressão contra Teerã. Um porta-voz do Ministério das Relações Exteriores em Pequim disse ontem esperar que ¿as partes envolvidas aumentem seus esforços para avançar nessa questão por meio do diálogo¿. Às vésperas de visitar Teerã, o chanceler turco, Ahmed Davutoglu, declarou que ¿ainda há uma possibilidade importante¿ de se chegar a um acordo.

Avanço rápido

O presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, garantiu que a comunidade internacional avança ¿bastante rápido¿ para a imposição de novas sanções contra Teerã. ¿Apesar da defesa de que o poder nuclear é apenas para uso civil (...), eles de fato continuam buscando um caminho que conduza ao armamento, e isso não é aceitável pela comunidade internacional¿, afirmou o americano, que elogiou a resposta russa à decisão do Irã. Moscou colocou em dúvida os passos dados por Teerã. Por sua vez, o premiê de Israel, Benjamin Netanyahu, pediu a adoção de ¿sanções paralisantes¿ contra o regime.

O porta-voz do Ministério de Relações Exteriores do Irã, Ramin Mehmanparast, rebateu as ameaças de sanções. ¿Se eles tentarem uma nova resolução, estarão cometendo um erro. Isso não ajudará a resolver a disputa nuclear entre o Irã e o Ocidente¿, afirmou. O Irã deu início ontem, dois dias antes do aniversário da Revolução Islâmica(1), à produção de urânio altamente enriquecido. Até então, o país só conseguia enriquecê-lo a 5% ¿ porcentagem necessária para o uso energético. Os 20% alcançados agora são necessários, segundo o governo de Teerã, para o funcionamentos de reatores usados no tratamento de câncer. Segundo o chefe da Organização Iraniana de Energia Atômica, Ali Akbar Salehi, a cascata de 164 centrífugas, que fica separada da usina de Natanz, produzirá, por mês, de 3 a 5 quilos de urânio a 20%. ¿Isso é o dobro de nossas necessidades¿, afirmou.

1 - Ovos, pedras e gritos No mesmo dia em que iniciou o enriquecimento de urânio a 20% e na antevéspera do 31º aniversário da Revolução Islâmica, Teerã assistiu a uma incomum onda de ressentimentos contra a Itália e a França. Do lado de fora das embaixadas, pelo menos 100 pessoas gritavam ¿abaixo os Estados Unidos, a França e a Itália¿, além de outros slogans. O prédio da representação diplomática francesa foi atingido por ovos e pedras. Os protestos duraram cerca de 20 minutos e foram pacificamente contidos pela polícia.

MAIS UM OPOSITOR CONDENADO À MORTE Um iraniano foi condenado à pena capital por sua participação nos protestos contra o governo, no fim de dezembro. A agência Isna divulgou a informação na tarde de ontem. Agora, já são 12 pessoas condenadas à morte por seu envolvimento nessas manifestações. Nove responsáveis pelos distúrbios da Achura foram condenados: um à pena capital e oito a penas de prisão, afirmou a Isna, citando um comunicado da Promotoria de Teerã, sem fornecer maiores detalhes. As manifestações do dia de luto xiita da Achura, em 27 de dezembro, deixaram oito mortos e centenas de feridos.

Não queremos que o Irã tenha armas nucleares. Apenas reconhecemos que é um direito ter um programa pacífico como outros países e o que nós queremos é chegar a esta certeza por meios pacíficos e pelo diálogo¿

Celso Amorim, ministro das Relações Exteriores do Brasil

É necessária agora uma ação dura por parte da comunidade internacional. (¿) Isso significa sanções paralisantes¿

Benjamin Netanyahu, primeiro-ministro de Israel

O Irã afirma que não se esforça para produzir arma atômica, e sim que busca a energia nuclear civil. Mas os passos que dá geram dúvidas¿

Nikolai Patruchev, secretário do Conselho Russo de Segurança

Análise da notícia Dissuasão estratégica

Rodrigo Craveiro

Se alguém duvida das pretensões armamentistas do Irã, basta analisar o mapa do Oriente Médio. Um pouco mais ao noroeste, Israel posa como um perigo real e iminente. Ele detém o maior e mais poderoso Exército da região. É consenso entre especialistas em não proliferação de que Telavive possui a bomba nuclear. Os israelenses guardam para si algumas declarações insanas e xenofóbicas do presidente iraniano, Mahmud Ahmadinejad, como sua promessa de varrer o Estado hebreu do mapa. Um mínimo gesto militar ou diplomático de Telavive seria pretexto para uma ofensiva preventiva de Teerã. Mais ao sul, o Paquistão se firma como a mais ameaçadora potência atômica do sudeste da Ásia e, ainda que mantenha uma relação sem grandes tensões com o Irã, por si só justifica a nuclearização do país dos aiatolás. Afinal de contas, no jogo geopolítico teoricamente leva a melhor quem pode lançar mão da estratégia de dissuasão.

É nesse contexto que se insere o pretenso papel do regime teocrático em direção aos Estados Unidos, histórico inimigo desde a deposição do xá Reza Pahlevi e a instauração da Revolução Islâmica, 31 anos atrás. Os norte-americanos foram os únicos a usarem, de fato, a bomba atômica. Seu interesse econômico no Oriente Médio é óbvio: a crise energética interna dependerá cada vez mais de petróleo do exterior. Além disso, a região é considerada importante, sob o ponto de vista estratégico, para o posicionamento de tropas. A presença militar dos EUA nos vizinhos Afeganistão e Iraque ¿ ainda que temporária ¿ exerce forte pressão sobre o Irã. Existe o receio ainda de valores ocidentais contaminarem uma cultura milenar. Mesmo jurando o propósito civil de seu programa nuclear ¿ e deixando de lado os arroubos pacifistas ¿, Teerã sabe que pode tirar proveito da bomba atômica. Sem precisar usá-la.