Título: Governo revê meta de superávit primário de 2009 para 3,8% do PIB
Autor: Romero , Cristiano
Fonte: Valor Econômico, 31/10/2008, Especial, p. A16

Por causa dos efeitos da crise financeira sobre a economia, o governo vai reduzir o esforço fiscal em 2009, diminuindo a meta de superávit primário de 4,3% para 3,8% do Produto Interno Bruto (PIB). Na prática, a redução será ainda maior, uma vez que o setor público consolidado (União, Estados e municípios) vem economizando 4,5% do PIB. Em entrevista exclusiva ao Valor, o ministro do Planejamento, Paulo Bernardo, disse que "não faz sentido" aumentar o esforço fiscal no momento em que a economia dá sinais de desaceleração. O propósito do governo é compensar, pelo menos em parte, a suspensão de investimentos do setor privado. Ruy Baron/Valor Paulo Bernardo: "A economia vai arrefecer, mas estamos trabalhando, para 2009, com um crescimento entre 3,8% e 4%"

"A economia brasileira tem hoje credibilidade e o esforço do governo será no sentido oposto. Vamos fazer o esforço que for preciso para a atividade desacelerar o menos que puder", afirmou Bernardo, acrescentando que, apesar da crise e da esperada queda da arrecadação tributária, o governo manterá os gastos do Bolsa Família, o reajuste do salário mínimo (estimado em mais de 12% em 2009) e as obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC).

O ministro defendeu a concessão, pelos bancos públicos, de juros mais baixos para as empresas exportadoras que estão perdendo dinheiro nas operações com derivativos cambiais. "Se o banco público puder ter uma taxa melhor para a empresa, para prestar um socorro financeiro, não tenho problema nenhum com isso", afirmou. Segundo Paulo Bernardo, o governo deve rever, para baixo, a previsão de expansão do PIB no próximo ano - de 4,5%, como estava na proposta original do orçamento, para algo entre 3,8% e 4%. A seguir, os principais trechos da entrevista:

Valor: Por que a crise internacional está afetando o Brasil de maneira mais forte que a esperada?

Paulo Bernardo: Essa crise vai deixar um rescaldo que terá que ser administrado. Nos países onde ela está batendo mais forte, haverá um período de 1,5 a dois anos para superar seqüelas. O Brasil tem uma situação diferente. Estamos praticamente sendo afetados por último e em numa intensidade menor. Tudo indica que vamos sair dela mais rapidamente. Fomos contaminados pela crise de confiança que abalou as instituições. O problema com aplicações das empresas no mercado de câmbio aparentemente não tem a gravidade que muitos vinham dizendo ter. O ministro Guido Mantega diz que isso vai ficar reduzido a algo em torno de US$ 7 bilhões.

Valor: No Brasil, mas a maioria das apostas foi feita no exterior.

Bernardo: Não é o volume de que se falava, mas esse problema também foi gerado pela crise de confiança. Quando todo mundo correu para o dólar, gerou-se um pânico e piorou a situação das empresas que fizeram derivativos cambiais. Com o restabelecimento de cotações mais civilizadas do dólar, o problema diminuiu. O que o governo está tentando fazer é debelar a crise de confiança, restabelecer o crédito, mostrar que temos muita margem ainda para aumentá-lo.

Valor: Que margem?

Bernardo: Temos reservas internacionais, o depósito compulsório, do qual todo mundo sempre reclamou, e é mesmo alto se olharmos os padrões internacionais, mas por outro lado acabou virando um colchão de liquidez. Com a eleição americana, a tendência é termos um período psicologicamente melhor. Independentemente do candidato que ganhar, ele vai ter interlocução com o governo Bush, que tem interesse em dar seqüência a medidas para acabar com a crise financeira. Depois, teremos a crise econômica por um tempo.

Valor: O Banco Central reconhece que ainda não sabe qual é o tamanho das perdas de empresas exportadoras com derivativos lá fora. O governo está preocupado?

Bernardo: Claro que sim. Estamos dando claros sinais de que nos dispomos a ajudar nas condições de mercado, de boa governança e boa técnica bancária. Pagar o prejuízo não temos como pagar. Sou favorável a que ajudemos as empresas que tiverem necessidade de recorrer a bancos oficiais.

Valor: Como será a ajuda?

Bernardo: Se a empresa tem garantias, receitas e condições de operar com banco público, o governo tem que ajudar. Banco existe para isso. O problema é que, no Brasil, banco às vezes só empresta a quem não precisa. Se o banco público puder ter uma taxa melhor para a empresa, para prestar um socorro financeiro, não tenho problema nenhum com isso. Ninguém quer e não é de bom tom exigir coisas inexeqüíveis no momento que alguém está precisando, mas também temos que deixar claro que nem o governo nem os bancos privados vão cobrir o prejuízo de alguém que fez uma operação que se revelou danosa para a tesouraria da empresa.

Valor: Diante da crise, qual é a previsão de crescimento para 2008 e 2009?

Bernardo: Em 2008, está dado. Vamos crescer mais de 5%.

Valor: Mesmo com a parada do último trimestre?

Bernardo: Essa parada não é geral. Aconteceu em alguns setores e não vai durar até o fim do ano. Os dados do comércio em setembro mostram que "bombou" de novo: 9,8% de crescimento real. O desemprego diminuiu, a arrecadação de impostos em setembro foi muito boa. Isso é reflexo da atividade econômica. A lógica mostra que vamos ter redução da atividade, mas está difícil prever a intensidade.

Valor: O senhor descarta a possibilidade de uma recessão?

Bernardo: Não. A economia vai arrefecer, mas estamos trabalhando, para 2009, com um crescimento na faixa de 3,8% a 4%.

Valor: A arrecadação no Brasil é pró-cíclica. Com a desaceleração da economia, deve cair. Como ficarão as contas públicas?

Bernardo: Como não tivemos, até agora, uma desaceleração efetiva, tudo indica que ainda teremos boa receita no fim do ano e no primeiro trimestre de 2009. Se a economia desaquecer efetivamente, teremos redução da receita a partir do segundo semestre. Neste ano, tínhamos meta de superávit primário de 3,8% do PIB, mas prometemos fazer mais 0,5% do PIB por meio da criação do fundo soberano. Na prática, estamos fazendo 4,5%. Para 2009, vamos trabalhar com meta de 3,8% do PIB.

Valor: Especialistas sugerem que, neste período de crise, o governo eleve o esforço fiscal para aumentar a confiança.

Bernardo: Nossa economia já tem confiança suficiente. E quem não confiar no Brasil, que aplique em outro lugar. Todos os países estão fazendo o contrário agora. Estão diminuindo o esforço fiscal, aumentando os gastos para fazer um esforço anticíclico. Achar que vamos arrochar num momento que está prenunciando que a economia vai diminuir a atividade não faz sentido. A economia brasileira tem hoje credibilidade e o esforço do governo será no sentido oposto. Se for preciso fazer o esforço que precisar para a atividade desacelerar o menos que puder, vamos fazer isso. Não faz muito sentido falar em aumentar o esforço fiscal. Não vai acontecer não!

Valor: Se o Congresso não aprovar a criação do fundo soberano, o que o governo fará com o 0,5% do PIB de superávit que foi economizado neste ano?

Bernardo: Os recursos, cerca de R$ 14 bilhões, serão esterilizados, ou seja, o governo "perderá" esse dinheiro, não poderá gastá-lo. Eles serão utilizados para abater a dívida pública. A oposição quer criar mais dificuldades. Em tempos normais, isso faz parte do jogo, mas num momento como esse é perigoso. É começar a brincar com a sorte do país.

Valor: Se o Congresso aprovar o fundo, onde serão aplicados os R$ 14 bilhões?

Bernardo: Isso é uma reserva de contingência. Poderemos usá-la para pagar dotações do orçamento ou, se forem dotações novas, teremos que pedir autorização ao Congresso. O plano do governo é usar o dinheiro para bancar investimentos em obras de infra-estrutura, compensando parte da retração esperada dos investimentos do setor privado.

Valor: O senhor declarou que, por causa da crise, o governo suspenderia a realização de concursos públicos e a concessão de novos aumentos salariais ao funcionalismo. A decisão está mantida, mesmo com o plano de fazer um superávit fiscal menor?

Bernardo: Isso está previsto na Lei de Responsabilidade Fiscal. Quando se tem dificuldade financeira, o governo tem que cortar programas que não foram implementados, que estejam sendo preparados, novos aportes para pessoal, investimentos que não sejam considerados prioritários. Tem que fazer o que o bom senso manda fazer.

Valor: O que é o bom senso nesta hora?

Bernardo: A orientação do presidente é manter o PAC (Programa de Aceleração do Crescimento). Se não tiver dinheiro para os outros investimentos, fora do PAC, vamos cortá-los. Vou ter que cortar até onde precisar para manter o PAC. É mais complicado cortar os programas sociais já implementados, mas há coisas que podemos postergar.

Valor: Pela regra atual, o salário mínimo vai subir acima de 12% em 2009. O governo pode mudar a regra para diminuir o impacto desse reajuste nas contas da Previdência?

Bernardo: Não. Não vamos mudar isso.

Valor: E o Bolsa Família?

Bernardo: Imagine o governo falar "estamos em crise e vamos cortar o Bolsa Família"! As pessoas vão dizer "vocês estão dando um jeito de resolver os problemas dos bancos, das empresas, estão socorrendo quem está em dificuldades no mercado e vão cortar o Bolsa Família?" Não é razoável.

Valor: O governo tomou medidas para dar liquidez ao mercado, mas ela continua empoçada. Há alguma medida nova para tentar forçar o aumento da liquidez?

Bernardo: Isso vai fluir naturalmente. Como a medida provisória 443 não tinha sido aprovada ainda, não tenha dúvida: ninguém (no mercado) fez nada, à espera da aprovação. A tendência é que, agora, ande mais rápido. Com o dólar caindo, os ânimos estão se acalmando. Os lucros dos bancos continuam pornográficos. Tudo indica que isso vai ajudar a acalmar o mercado.

Valor: Segundo levantamento do banco Credit Suisse, cerca de R$ 20 bilhões em investimentos privados já foram suspensos por causa da crise. Isso não preocupa o governo?

Bernardo: Se olharmos a programação que havia antes, esse número não é muito grande. Só o investimento da Petrobras passa de mais de R$ 100 bilhões (nos próximos quatro anos). Contando o setor privado, é mais de R$ 300 bilhões. Esses R$ 20 bilhões devem retomar depois. Conversei com as cooperativas agrícolas e alguns líderes do setor no Paraná e eles me informaram que uma boa parte da safra 2008/2009 já estava plantada. Quanto à outra parte os produtores já tinham comprado os insumos. No caso dos retardatários, dos últimos a plantar, faltou um pouco de crédito, mas as medidas que adotamos recentemente resolveram o problema. As cotações dos produtos caíram um pouco, mas não estão ruins. Mesmo que ocorra uma diminuição dos preços das commodities, a verdade é que, antes da crise, todas as análises mostravam que os estoques mundiais estão baixos e que o consumo aumentou. Não sei o que vai acontecer com o consumo, mas os estoques não vão aumentar porque teve crise. Eles vão continuar baixo. No setor de construção civil, há empresas que estão muito bem e outras que compraram terrenos, mas ficaram sem dinheiro para tocar os empreendimentos. A tarefa do governo é identificar quem está nessa situação para ver se o crédito pode resolver isso. No caso do setor de bens duráveis, como os automóveis, por exemplo, onde o crédito parou completamente, com o nível de emprego e de renda que temos aí, o mercado tem tudo para retomar. O mercado de automóveis cresceu 25% em um ano. Não é possível imaginar que vai continuar desse jeito, mas tem condições de se manter bem.