Título: Sem a máquina, PT perde maior reduto
Autor: Junqueira , Caio
Fonte: Valor Econômico, 31/10/2008, Política, p. A10

A derrota da petista Marta Suplicy nas eleições de São Paulo colocou em risco a hegemonia de um dos seus principais grupos de apoio político, a família Tatto. Com três dos doze irmãos com representação nas esferas municipal, estadual e federal do Poder Legislativo, seus integrantes assistiram no domingo ao que há alguns anos parecia improvável: a vitória, de virada, de um adversário "da direita conservadora" no seu reduto eleitoral, a Capela do Socorro, na carente zona sul sul da cidade. João Wainer/Folha Imagem - 20/5/2008 Kassab, Lula e Serra em cerimônia do PAC: reurbanização de favelas foi capitalizada por grupo de Kassab

Apesar de Marta ter batido o prefeito Gilberto Kassab (DEM) no primeiro turno por 42% a 32%, na segunda rodada ele virou para 50,5% a 49,4%. Um feito inédito, que ganha mais força com a perda de espaço na região do vereador eleito para seu sexto mandato Arselino Tatto ao mesmo tempo em que vereadores aliados de Kassab, como Antonio Goulart (PMDB) e Milton Leite (DEM), aumentaram sua votação. Tatto viu o decréscimo de seu sufrágio de 6,5% em 2004 para 5% neste ano, enquanto Goulart passou de 15,4% para 23,2% e Leite, de 2,7% para 5,2%.

O curioso é que os fatores que consolidaram o poder dos Tatto na Capela do Socorro são os mesmos que agora os obrigam a, no mínimo, ter que dividir o poder em seu histórico reduto eleitoral: a utilização da máquina pública como sustentáculo do pragmatismo político e do assistencialismo em uma das regiões mais pobres da capital paulista. Pior, com grande ajuda do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que, com bom relacionamento com Kassab e com o governador José Serra (PSDB), destinará até 2010, via Programa de Aceleração de Crescimento (PAC), cerca de R$ 1 bilhão para a reurbanização de favelas e recuperação de mananciais nas represas Billings e Guarapiranga, que margeia a Capela do Socorro.

"Houve forte uso da máquina da prefeitura e particularmente na zona sul e naquela região da Capela, com clara utilização do dinheiro do PAC sendo usado para potencializar a candidatura de vereadores e do prefeito na região", afirma o deputado federal Jilmar Tatto. Ele diz que, embora seja do mesmo partido que o presidente, são os municípios que controlam os recursos do PAC. "O governo federal manda o recurso para as cidades. Então todo o processo do cronograma de obras de investimento e a locação disso em determinado local é feito pelas prefeituras", diz. Tatto também cita como exemplo de utilização da máquina o "checão" que Kassab deu a Serra para a ampliação do metrô, a duas semanas das eleições.

Mas foram as obras na região, que na avaliação de petistas colocou em xeque a predominância dos Tatto na zona sul. Boa parte delas sendo capitalizadas eleitoralmente pelo vereador Milton Leite, um ex-pemedebista que na gestão Kassab migrou para o Democratas. Empresário ligado ao setor de construção civil e agora integrante do mesmo partido do prefeito, obteve influência dentro do segundo escalão da Secretaria Municipal de Habitação, também comandada pelo Democratas. Isso fez com que, por exemplo, soubesse de antemão as inaugurações e obras em andamento na Capela do Socorro.

"Muitas pessoas ali acham que as obras da secretaria são dele. Tudo é tido como coisa dele. Quando você fica sabendo de um evento da secretaria, o pessoal dele já fez todo o trabalho prévio de divulgação da obra como se fosse do vereador. Isso ocorreu em todas as situações por ali", afirma uma liderança da região, que pede anonimato porque diz que "vive e pretende continuar vivendo na região". No balanço da subprefeitura da Capela do Socorro, mais de 9 mil famílias foram beneficiadas em obras de habitação no bairro. Nem a Secretaria de Habitação nem o vereador responderam aos esclarecimentos do Valor. Em quatro anos, Milton Leite dobrou seu percentual de votos na região, sendo o segundo mais votado neste ano.

A primeira colocação ficou com Antonio Goulart (PMDB), com praticamente um quarto das urnas da Capela do Socorro e a segunda votação em toda a capital. Em 2000 teve 4,4% e em 2004 15,3%. O pemedebista atua no encaminhamento de demandas de uma série de entidades sociais da região. "Se tem feijoada estou na cozinha, se tem churrasco estou na churrasqueira, se tem reivindicação eu tô ajudando a colher assinatura a elaborar documento. São as entidades sociais que me ajudam a construir o mandato" diz ele.

A mais conhecida delas é a Sociedade Beneficente Equilíbrio de Interlagos (Sobei), presente há mais de 20 anos na região e cuja vice-presidente é mulher do vereador. Seu principal ramo de atuação é a administração de creches, atendendo cerca de 4.000 crianças. Antes da gestão Kassab, a entidade administrava duas, uma desde 1988 e outra desde 1999. Goulart, que integrou a base de Marta entre 2000 e 2004 passou a apoiar Kassab.

Na atual gestão, conseguiu que a Sobei administrasse mais quatro creches. "Todas as entidades que ajudo têm alto nível. Tenho relacionamento com várias. A Sobei é só mais uma e existe muito antes do Goulart ser vereador", afirma. Além da atuação com as entidades assistenciais, o vereador também capitalizou votos com uma ponte que melhorou o trânsito na região e que leva o nome de seu pai, Vittorino Goulart, e com a estação de trem em Grajaú. Ele sonha agora com a construção de avenidas marginais nas represas Billings e Guarapiranga.

A força de Goulart na região fez com que a coordenação de campanha de Kassab deslocasse seus correligionários para organizar o comitê do Democratas na região. "Em um primeiro momento, procuramos atuar com discrição. Existe uma animosidade e uma defesa do território muito grande pelos petistas aqui", afirma Vanderlei Taconi, responsável pelo comitê.

Ele conta que na campanha do primeiro turno o foco foi a "conversa ao pé-de-ouvido", por meio dos visitadores que casa-a-casa apresentavam o desconhecido prefeito e suas realizações na região. O resultado foi um salto de 8 pontos na pesquisa para 32% dos votos nas urnas. Isso fez com que no segundo turno eles "escancarassem", segundo suas palavras, a campanha nas ruas. "Enquanto os petistas se preocuparam em manter o que tinham, nós queríamos crescer onde não tínhamos. E acabamos virando o jogo", diz. O prefeito, porém, foi pouco à Capela. Fez mais visitas como prefeito do que como candidato. "Temíamos represálias dos adversários", afirma.

O receio se justifica por um confronto que marcou as eleições municipais de 2004. O candidato desafiante, José Serra, foi até a Capela fazer campanha e o maior embate daquela disputa se instaurou. "Aqui tucano não entra", brandiam os aliados dos Tatto. Houve tumulto e provocações diretas a Serra, que se viu em meio a um empurra-empurra. O episódio acabou na delegacia. Era o auge da força dos Tatto, que com Marta prefeita, teve nomeado Jilmar Tatto para a quatro importantes secretarias (Abastecimento, Transportes, Subprefeituras e Governo). Arselino foi eleito presidente da Câmara. A subprefeitura e o serviço funerário da Capela do Socorro foram concedidas a aliado e o processo de filiação em massa consolidou seu poder dentro do PT paulistano, com reflexos até hoje: dos 82 mil filiados da capital, cerca de 10 mil são do diretório da Capela.

Por outro lado, essa concentração de poder já começava a incomodar petistas locais, que se sentiam alijados das principais decisões do grupo e sem espaço para crescerem no partido. Exemplo disso é que, até hoje, o diretório da Capela do Socorro controlado pelos Tatto engloba também Grajaú e Parelheiros, áreas mais pobres ao sul e onde eles têm melhores votações. Foi lá que a diferença entre Marta e Kassab foram das maiores na cidade, o que os Tatto apontam como contraponto à avaliação de que perderam força em seu reduto. Mas também foi por lá que desponta uma das dissidências do grupo, o vereador eleito Alfredinho. Ele foi o terceiro mais votado no Grajaú, nono em Parelheiros e quarto na Capela, com 3.806 votos, 2.500 a menos que Arselino.

Além da concentração de poder, outra crítica que se faz na própria zona sul é de que o pragmatismo dos Tatto sufocou a luta orgânica dos movimentos sociais da Capela do Socorro, predominantes na fundação do partido na área. A preferência dada foi a atendimento de demandas locais em detrimento do debate ideológico.

Vindos do Paraná nos anos 70, eles se instalaram na zona sul paulistana, tendo ativa participação nas Comunidades Eclesiais de Base. Na época, a igreja na região era chefiada pelo progressista dom Antônio Gaspar, bispo auxiliar do também progressista dom Paulo Evaristo Arns. Dom Paulo solicitou ao Vaticano a criação da diocese de Santo Amaro e que Gaspar a comandasse.

Na esteira do conservadorismo do papa João Paulo II, a diocese foi criada, mas sua administração foi delegada a dom Fernando Figueiredo, tido na região como muito conservador. Essa troca enfraqueceu os movimentos progressistas que desenvolviam seus trabalhos na região. Simultaneamente, as duas principais lideranças que fundaram o PT por lá, Marco Aurélio Ribeiro e Airton Soares, deixaram o partido em protesto contra o não-apoio da sigla a Tancredo Neves durante o colégio eleitoral em 1985.

Esses dois fatos deixaram um vácuo político na região, que propiciou o surgimento dos Tatto na política. A família tinha atuação em alguns movimentos, como o que incentivava a ocupação clandestina de terrenos. A vitória de Luiza Erundina, então no PT, colocou-os na máquina pública pela primeira vez. Um dos irmãos, Leonide Tatto, passou a comandar a subprefeitura da Capela do Socorro. Arselino foi eleito vereador. Nos anos 90, Arselino foi reeleito sucessivas vezes.

Eventuais reflexos da perda de espaço na Capela do Socorro nas disputas internas do partido são rechaçadas pela família. "A ação do nosso grupo transcende os limites da Capela. Na cidade elegemos quatros vereadores além do Arselino, sendo que três deles são da zona leste, onde há a maior concentração de eleitores da cidade", afirma o deputado estadual Ênio Tatto. Mas para um dos principais petistas da região, Glauco Piai, secretário de Organização do PT municipal, é preciso resgatar as origens do petismo na região para combater o avanço de Kassab. "Temos que resgatar os canais de comunicação perdidos com os movimentos progressistas da Igreja e com as associações de bairro. Foi uma derrota que vai se transformar em uma grande vitória".