Título: Negro com bons modos, Obama foca na conciliação
Autor: Balthazar , Ricardo
Fonte: Valor Econômico, 31/10/2008, Internacional, p. A12

Quando Barack Obama estava perto de completar 18 anos, um dos seus melhores amigos no Havaí foi preso com cocaína no carro. Sua mãe ficou assustada e foi até o quarto do filho interrogá-lo, para saber se também estava envolvido com drogas. Como outros nessa idade, Obama já havia experimentado maconha e cocaína, mas preferiu não dizer nada à mãe.

Obama contou o que ocorreu com riqueza de detalhes em seu primeiro livro de memórias, publicado muitos anos depois. Confrontado pela mãe, ele deu um sorriso, acariciou sua mão e disse que não precisava se preocupar. "Em geral era uma tática eficaz, outro daqueles truques que eu havia aprendido", Obama escreveu. "As pessoas ficavam satisfeitas desde que você fosse cortês, sorrisse e não fizesse nenhum movimento brusco."

Obama usou o episódio no livro para refletir sobre a maneira como o resto do mundo olhava para ele, numa época da sua vida em que atravessava uma profunda crise de identidade. "As pessoas ficavam mais do que satisfeitas; elas ficavam aliviadas", escreveu. "Que agradável surpresa encontrar um jovem negro com bons modos que não parecia zangado o tempo inteiro."

Se os institutos de pesquisas estiverem certos, Obama será eleito presidente dos Estados Unidos na próxima terça-feira. Será a primeira vez que um negro chegará à Casa Branca, um feito extraordinário num país que há uma geração ainda impedia muitos negros de votar e de freqüentar as melhores escolas. Será também a primeira vez que um político tão jovem e inexperiente assumirá a liderança da nação mais poderosa do globo.

Aos 47 anos, com dois livros de memórias publicados e uma carreira pública meteórica, Obama ainda é um enigma para muitos americanos. Todos conhecem seu rosto, e muitos se encantam com a força dos seus discursos. Quase dois anos de campanha eleitoral mostraram também que Obama é um político excepcionalmente talentoso, com qualidades que vão além da oratória. A maioria do eleitorado confia nele, mas muitas pessoas ainda têm dúvidas sobre sua motivação e os riscos que sua eleição pode representar.

Obama se apresentou na campanha como a personificação dos desejos de mudança e reconciliação do eleitorado americano. Filho de pai africano e mãe branca, ele nasceu no Havaí e passou a maior parte da infância e da adolescência longe dos EUA, vivendo em Honolulu e na Indonésia. Ele era uma criança na época em que os jovens faziam passeatas contra a guerra do Vietnã e os negros marchavam contra a segregação racial.

O envolvimento de Obama com a política só começou em 1985, quando ele saiu da faculdade e se mudou para Chicago, para trabalhar como ativista comunitário na região mais pobre da cidade. A experiência durou apenas três anos e foi mais frustrante do que sugerem as referências que o candidato fez a esse período durante a campanha.

Os projetos em que ele se envolveu em geral deram pouco resultado. Obama convenceu a prefeitura de Chicago a abrir um centro de apoio a desempregados no bairro em que atuava, mas não havia empregos para distribuir. Seu maior êxito foi uma campanha para obrigar as autoridades a remover o amianto usado na construção de um conjunto habitacional popular.

Ele saiu de Chicago para estudar Direito em Harvard, a mais prestigiosa das universidades americanas. Voltou para a cidade com o diploma e o desejo de mergulhar na política. Numa entrevista recente, um dos sócios do escritório de advocacia que o contratou depois de Harvard disse que ficou com a impressão de que Obama estava mais interessado em conhecer gente influente na cidade do que em trabalhar no escritório.

Ele logo começou a mostrar o tamanho da sua ambição. Na sua primeira campanha eleitoral, em 1996, quando conquistou uma vaga no Senado estadual de Illinois, ele foi à Justiça para impedir que vários rivais no Partido Democrata entrassem na cédula. Em 2000, ele desafiou um veterano ativista negro muito popular em Chicago e sofreu uma derrota humilhante, numa eleição para o Congresso.

Obama saltou para o palco da política nacional com a ajuda de dois discursos. No fim de 2002, ele participou de uma manifestação em Chicago contra a invasão do Iraque e atacou o presidente George W. Bush, numa época em que ele ainda gozava de grande popularidade e estava prestes a iniciar os bombardeios. "Não me oponho a todas as guerras", disse Obama. "Oponho-me a uma guerra burra."

Dois anos depois, quando se elegeu para a vaga que ocupa no Senado federal, ele fez um discurso arrebatador na convenção nacional dos democratas. Foi a primeira exibição do poder da sua oratória para uma grande platéia. Obama lançou ali o tema central de sua campanha à Presidência, defendendo a superação das profundas divisões ideológicas que atormentam a sociedade americana.

Os últimos meses podem não ter bastado para eliminar todas as dúvidas que os eleitores têm sobre Obama, mas certamente ajudaram muita gente a se sentir mais confortável com ele. Ele reagiu com sangue frio ao pandemônio nos mercados financeiros, oferecendo um contraste notável com a impulsividade exibida pelo seu adversário, o senador John McCain.

Obama também demonstrou uma estupenda capacidade de organização, mobilizando milhões de voluntários e arrecadando mais de US$ 640 milhões para financiar sua campanha, a mais cara da história americana. Sua equipe exibiu até aqui um grau de disciplina incomum no meio político. Ninguém fala mal de ninguém ou procura os jornais para fofocar sobre o chefe.

O que ninguém sabe ainda é como as qualidades pessoais demonstradas por Obama durante a longa temporada eleitoral serão empregadas no dia-a-dia do governo se ele vencer a eleição de terça-feira. Algumas posições conciliadoras que ele adotou na campanha decepcionaram a esquerda do seu partido. Os republicanos acham que ele é um radical enrustido e apontam sua inexperiência e suas tentativas de agradar a todo mundo como a receita certa para um desastre.

Para os seus admiradores, é tudo conversa da oposição. "Ele ouve todos os lados", escreveu recentemente o advogado Cass Sunstein, um professor de Harvard que conheceu Obama em Chicago e virou seu amigo. "Seu ceticismo diante de categorias ideológicas convencionais é questão de princípios, não de estratégia." Quando chegar a hora de governar, diz Sunstein, Obama irá se cercar de assessores que "refletirão diferentes visões e desafiarão suas inclinações".