Título: A iliquidez da política monetária
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 04/11/2008, Opinião, p. A14

A crise tem sido avassaladora para as finanças e tudo indica que o setor produtivo atravessará tempos difíceis. Os paradigmas que balizavam a economia brasileira escondiam imensas inconsistências.

Como a economia não é uma ciência exata, é normal que o mercado construa e crie suas verdades, chamadas por Keynes de "convenções". Elas são compostas por um conjunto de variáveis articuladas, que permite um funcionamento estável do sistema. O mercado vai além, busca eternizar a convenção como verdade imutável: os "fundamentos". Assim, políticas monetárias, fiscais e cambiais bem calibradas seriam fiadoras da estabilidade da economia.

A crise é o momento em que este leque de conceitos e procedimentos, que antes garantia certa uniformidade na formação de expectativas, entra em colapso. As autoridades pelo mundo afora já compreenderam muito bem o que é esta crise. Preceitos solidamente estabelecidos foram abandonados com falência do banco Lehman Brothers. Governos tiveram que fornecer liquidez, endurecer a regulação e até mesmo estatizar instituições financeiras.

No mundo, trilhões de dólares eram transacionados em mercados desregulados e em condições altamente especulativas. No Brasil, bilhões de reais só agora foram descobertos fora dos balanços, e uma parte sem supervisão estatal e custódia, apostados em derivativos cambiais e transações com carteiras de créditos. Enquanto nossas autoridades bravateavam a solidez de nosso sistema financeiro, uma súbita e radical desconfiança arrasou o crédito no país. Superamos os países ricos aonde a desconfiança imperava apenas entre os bancos; aqui, o contágio envolve diretamente o lado real da economia. O dinheiro sumiu a ponto do valor da empresa parece ter sido reduzido ao valor do seu caixa. Férias coletivas para trabalhadores é eufemismo para esconder que são os próprios empresários que estão parando de trabalhar, pois perderam o referencial futuro para decidir produzir.

Abandonar dogmas e reconstruir instrumentos de controle são tarefas urgentes das autoridades econômicas. As brasileiras ainda não se aperceberam do real tamanho do desafio que precisam superar, pois não acreditamos que tentariam fugir a suas responsabilidades (até porque seria impossível na crise). Um bom retrato vem da idéia difundida pelo presidente do Banco Central, de que: "política monetária visa controlar a inflação com seu instrumento fundamental que é a taxa de juros base. Não devemos (sic) confundir isso com a gestão de liquidez".

A confusão está nos conceitos e na compreensão do enfrentamento desta crise. Manuais de finanças e apresentações no próprio sítio do Bacen ensinam que política monetária, em geral, é conduzida por meio de três instrumentos: a) as operações de mercado aberto, mediante as quais a autoridade monetária busca atingir sua meta operacional e fazer a gestão diária da liquidez do sistema; b) o redesconto, que é a válvula de segurança à disposição dos bancos para solucionar problemas de caixa ao final do dia; e c) os recolhimentos compulsórios, usados para limitar a capacidade de criação de crédito pelos bancos aos agentes não-bancários. Como as intervenções do Banco Central no mercado monetário são realizadas por meio do sistema bancário, os problemas de liquidez dos bancos (e das empresas) e de política monetária são intrinsecamente relacionados.

Desconhecer a complementariedade dos instrumentos pode ser fatal. A redução das alíquotas dos recolhimentos compulsórios, mantida alta a taxa de juros, pode ser inócua. Os bancos podem simplesmente decidir não dar crédito, dado que o risco envolvido em um empréstimo depende, entre outros fatores, da taxa de juros vigente e das expectativas quanto à sua trajetória futura. Aliás, as políticas adotadas pelos bancos centrais do mundo todo indicam que a taxa de juros e a gestão de liquidez são peças de uma mesma política de recuperação dos fluxos de crédito no sistema. As injeções de recursos têm sido acompanhadas de fortes cortes nas taxas de juros.

Numa situação como a atual, de radical aversão ao risco e total empoçamento da liquidez nas instituições de maior porte, um aumento adicional dos juros piorará ainda mais as condições de crédito, tanto para empresas como para bancos de médio e pequeno porte, acelerando nosso caminho para a recessão.

Mais relevante do que uma bizantina discussão sobre conteúdo da política monetária no meio do furacão é questionar se uma das principais autoridades econômicas do país ainda não atentou que conceitos e formas de fazer política econômica que prevaleceram nos últimos anos, num ambiente econômico específico, não podem ser transpostas para um quadro radicalmente distinto. A abundância de recursos externos e o regime de metas de inflação reduziram e resumiram a política monetária dos últimos anos à fixação da taxa de juros básica - a Selic. Não se fez política monetária, mas apenas se gerenciou a relação entre a taxa de juros e taxa de câmbio para incentivar a entrada de capitais e controlar a inflação. Nem a liquidez do interbancário, nem o crédito ao setor produtivo, nem as inovações financeiras foram objeto da ação do Bacen. Não por acaso, a grande "inovação" do sistema bancário brasileiro nos últimos anos foi o crédito consignado à pessoa física.

Há uma contradição em se vangloriar, de um lado, da solidez de nosso sistema e, de outro, reduzir a política monetária ao mera gerenciamento da taxa de juros. Por lei, o Bacen tem atribuições e campo de atuação mais amplos do que seus congêneres de países ricos. Ao contrário destes, não pode alegar falta de condições e informações para supervisionar o que fugiu de transações bancárias clássicas. O que é um diferencial em favor do Brasil para enfrentar esta crise está sendo renegado - um Banco Central com amplos poderes. É preciso resgatar o real significado da expressão "autoridade monetária" - e, por tabela, de "autoridades econômicas".

Se já continuamos campeões mundiais de juros altos, agora temos mais uma singularidade: tentar conduzir a política monetária fora do contexto da gestão de liquidez.

José Roberto Afonso é mestre em Economia pela UFRJ e doutorando do IE/Unicamp.

Geraldo Biasoto Junior é professor licenciado do IE/Unicamp e diretor da Fundap.