Título: O FMI e a crise cambial que veio do leste
Autor: Dayoub , Mariam
Fonte: Valor Econômico, 06/11/2008, Opinião, p. A14

Dez dias após a falência do Lehman Brothers, participamos da 11ª Conferência Internacional sobre o Mercado Bancário organizada pela regional de Chicago do Banco Central americano. No jantar de encerramento, o convidado de honra, Charles Dallara, diretor executivo do Instituto de Finanças Internacionais, fez um pedido ao Fundo Monetário Internacional (FMI): revisem o seu estatuto para que esse dinheiro empoçado na instituição possa ser utilizado na resolução da crise financeira dos países desenvolvidos.

O estatuto do FMI é claro. A instituição tem mandato apenas para socorrer países em crise de balanço de pagamentos, também conhecida por crise cambial, que ocorre quando, com a saída maciça de capital estrangeiro de um país, sua moeda se desvaloriza (ou, no caso de câmbio fixo, o governo é forçado a desvalorizar a moeda) rapidamente. Com isso, a dívida do país lastreada em moeda estrangeira cresce abruptamente e o país se vê inapto a honrá-la.

Refletindo sobre o pedido do nosso convidado de honra, a quem recorreriam os países emergentes, caso crises cambiais locais se desenvolvessem durante esta crise financeira global? O FMI é um órgão bastante burocrático, de maneira que uma mudança em seu estatuto provavelmente levaria meses, senão anos, para ser feita. Os países emergentes devem estar "agradecidos" por esta burocracia.

Em um mundo em que os mercados de capitais estão integrados e a globalização se difundiu, o principal mecanismo de contágio da crise atual é o financeiro. Segundo o estrategista-chefe de moedas do Morgan Stanley, Stephen Jen, "até o momento, o epicentro da crise financeira global tem sido o setor financeiro americano. Temo que a forte aterrissagem dos ativos e das economias emergentes será o 2º epicentro da crise nos próximos meses, com efeitos negativos de retroalimentação sobre as economias desenvolvidas".

Esse ciclo de retroalimentação negativa se instala porque, de acordo com o Bank for International Settlements, os bancos dos países desenvolvidos foram os grandes financiadores dos mercados emergentes. Dos US$ 4,7 trilhões em empréstimos bancários para os emergentes (cerca de 50% do total de capital privado que migrou para esses países), três quartos foram financiados por bancos sediados na Europa ocidental. Esse volume é superior, por exemplo, ao total de empréstimos subprime concedido nos EUA. Com a maior estabilidade macroeconômica e a previsibilidade de políticas monetárias, tomar crédito em moeda estrangeira tornou-se comum dentre os emergentes, assumindo-se que as moedas locais continuariam a se apreciar versus as moedas dos países desenvolvidos.

Até alguns meses atrás, ainda se falava em "descolamento" dos emergentes, argumentando-se que a demanda doméstica seria suficiente para manter um crescimento robusto, que seus bancos tinham exposição quase nula aos ativos tóxicos lastreados em hipotecas americanas de alto risco e que o boom de commodities sustentaria as economias exportadoras destes bens. Com a fuga de capital estrangeiro e a queda da confiança global, isso mudou.

Nas últimas semanas, os mercados de moedas mostraram movimentos bruscos há tempos não vistos. As moedas emergentes sofreram forte depreciação, enquanto o dólar americano, o iene e o franco suíço se apreciaram. Do nosso ponto de vista, isso reflete a desalavancagem global, o desmonte das apostas baseadas na expectativa de que o crescimento mundial continuaria robusto mesmo com a recessão americana, grande parte financiadas via carry trade, e a liquidação de contratos de derivativos cambiais. Indo além, o fortalecimento do dólar americano desde meados de julho indica a reversão nas tendências de investimento que prevaleceram no período de crédito abundante e barato, crescimento mundial robusto e baixa volatilidade nos mercados.

A forte depreciação das moedas locais indica que os países emergentes enfrentarão crises cambiais. Desta vez, não é uma crise cambial na América Latina ou na Ásia, mas uma crise cambial com dimensões globais. O epicentro está nos países do leste europeu, cujo sistema financeiro estava à beira do "derretimento". Como trabalham com bandas cambiais atreladas ao euro, a forte saída de capital estrangeiro aponta para inconsistências entre a política macroeconômica e a política cambial locais, o que leva à forte desvalorização de suas moedas. Com o estouro de crises cambiais, cerca de 12 países estão em negociação com o FMI, que, na 2ª quinzena de outubro, emprestou US$ 2,1 bilhões à Islândia, US$ 16,5 bilhões à Ucrânia e US$ 25,1 bilhões à Hungria.

Os problemas advindos da crise financeira dos países desenvolvidos, a desalavancagem dos fundos de hedge e o contágio mais rápido e brutal dos países emergentes são problemas que se retroalimentam. Crises cambiais estão começando a estourar nos emergentes - nos países pequenos - e a ajuda financeira (condicional) do FMI é a melhor forma de socorrê-los. Já que o FMI tem vasta experiência em lidar com este tipo de crise, seus recursos limitados são melhor aproveitados se destinados aos emergentes em crise cambial, uma vez que, para os países desenvolvidos em crise financeira, a força total vem com o expansionismo fiscal e as inovações de política monetária.

O questionamento de Dallara foi válido. Porém, a burocracia do FMI revelou-se a "salvação" dos emergentes onde crises cambiais estão estourando. Assim, o FMI voltou às suas raízes de emprestador de última instância.