Título: Moreira, Assis
Autor: Moreira , Assis
Fonte: Valor Econômico, 07/11/2008, Especial, p. A14

O diretor-geral da Organização Mundial do Comércio (OMC), Pascal Lamy, dá razão ao Brasil em tentar arrancar dos chefes de governo que vão se reunir dia 15, em Washington, o prazo de três semanas para os negociadores tentarem fechar ainda este ano a Rodada Doha. AP Photo/Keystone/ Salvatore Di Nolfi

Pascal Lamy, diretor-geral da OMC: ainda é possível concluir o acordo da Rodada Doha na administração Bush

Para Lamy, a não-conclusão da negociação global de liberalização comercial significará para o Brasil não apenas deixar de se beneficiar bastante, como terá "custos evidentes" no comércio agrícola internacional e no acesso de seus produtos industriais em nações em desenvolvimento, inclusive entre os vizinhos.

Em julho, quando fracassou a grande reunião ministerial para fechar a rodada, muitos países reclamavam que o teto para os subsídios agrícolas dos Estados Unidos, em US$ 14,5 bilhões, ainda era muito alto, já que Washington vinha dando a seus agricultores bem menos.

Naquela altura, os preços agrícolas estavam elevados, o que implicava menos necessidade de subsídios. Mas a situação muda rápido, lembrou Lamy. De julho até agora, o preço do algodão caiu bastante e o nível potencial do subsídio americano para seus cotonicultores passou de zero para US$ 2,5 bilhões.

Lamy recebeu o Valor em seu gabinete com vista para o lago de Genebra para sua primeira entrevista depois que confirmou, na terça-feira, a intenção de continuar no comando da OMC por mais quatro anos.

Ele falou sobre a falta de posição comercial comum do Mercosul, a ameaça de recessão global severa e de sua visão sobre as respostas para enquadrar o sistema financeiro internacional, dando o exemplo da regulação do comércio pela OMC.

A seguir, os principais trechos da entrevista:

Valor: Valor ? Qual sua avaliação sobre o estado do mundo?

Pascal Lamy : Entramos numa recessão que será provavelmente extremamente severa, de amplitude até agora não vista, da qual não sabemos quanto tempo vai durar. Não há modelo de referência que permita ajustar o diagnóstico. É uma crise global, e muito vai depender da qualidade da resposta de políticas públicas e de sua coordenação.

Valor: Qual o tamanho da contração do comércio internacional?

Lamy: Haverá redução, contração do comércio, no que é ligado em parte ao crescimento da economia. O crescimento do comércio internacional obedece a três leis: crescimento da economia, inovação tecnológica e política comercial. A Organização Mundial do Comércio se ocupa do terceiro ponto, de redução dos obstáculos nas trocas, é o único que é regulado. Temos uma influência marginal sobre as cifras.

Valor: O Brasil será bem afetado?

Lamy: Seguramente. As projeções do FMI mostram que o crescimento para Estados Unidos , União Européia e Japão será zero, e de 6% para os emergentes, em 2009. Os emergentes são mais sensíveis ao comércio internacional do que EUA, Europa e Japão. A respiração com a economia internacional é mais forte para China, Brasil, África do Sul, Egito. São países com sensibilidade maior do que outros por causa de sua organização e crescimento econômico a uma mudança na conjuntura.

Valor: A China não será motor então?

Lamy: Sim, porque 6%, em média, em 2009 para os emergentes ainda será muito, e é o que permitirá os 2% de expansão da economia mundial. Mas se esses países forem mais atingidos, a crise será realmente grave.

Valor: Existe o problema de falta crédito à exportação. O sr reúne bancos na semana que vem. Que tipo de solução está na mesa?

Lamy: A OMC não pode tomar decisão nessa área. Mas é preciso trabalhar num menu de possibilidades, destinado a dar garantias e reduzir os riscos (das operações). O Banco Mundial tem agido, o Banco do Brasil fez uma boa coisa, Hong Kong aumentou o capital de seu Eximbank. Não há solução única, mas há meios de reduzir risco, que é aliás bem limitado nesse tipo de operação. As garantias aqui não são ativos tóxicos, são as próprias mercadorias. Seria paradoxal (os governos) abrirem financiamento envolvendo subprime e CDS (swap de crédito), do qual ninguém sequer sabe o valor, e não abrirem para o comércio. O volume é enorme, 84% do comércio mundial funciona com financiamento A idéia não é substituir os bancos privados.

Valor: Não é exagerado ver riscos protecionistas agora, quando a questão é que, com recessão, desemprego, as pessoas têm menos dinheiro para consumir?

Lamy: A experiência histórica prova que nos tempos difíceis, a tendência de proteção e de colocar a dificuldade na costa do estrangeiro é velha como o mundo. É preciso esperar isso. Podemos prevenir, com a OMC, mas é politicamente natural. Jogar a culpa nos estrangeiros reduz o peso de problemas domésticos.

Valor: É realista a proposta do Brasil, para os presidentes que vão se reunir em Washington, dia 15, de estabelecer prazo de três semanas para concluir Doha ainda este ano?

Lamy: A posição brasileira é de impulsionar isso por razões evidentes. Se outros em torno da mesa vão atuar como o Brasil, não sei. Mas pelos meus contatos, me parece provável e desejável que o G-20 destaque três pontos: abertura dos mercados como prescrição geral num momento que se pode ter tentações protecionistas, a conclusão da Rodada Doha, para renovar essa apólice de segurança coletiva, e urgência para tentar chegar ao acordo.

Valor: Qual estratégia diferente para concluir Doha agora, quando já foi tentado quase tudo e não funcionou?

Lamy: É sempre uma mistura de progresso técnico, diferentes compromissos (para cortar subsídios e tarifas) e energia politica. Contrariamente ao que a maioria das pessoas pensa, o negociador comercial não passa o essencial do seu tempo com seu colega estrangeiro, mas negociando em seu próprio país. Uma negociação comercial é, antes de tudo, uma negociação interna, e é preciso muita energia política para fazer isso.

Valor: Como o sr vê a crescente impaciência em relação a Doha, incluindo aí o Brasil?

Lamy: A coisas mudam muito rápido. O preço do algodão voltou a US$ 0, 57, como estava antes da alta de preços. Entre julho e agora, o nível potencial de subsídios americanos ao algodão passou de zero a US$ 2,5 bilhões. Dizia-se em julho que a redução de subsídios americanos não era muito, porque os preços das commodities estavam elevados. Agora (essa redução) é muita. Da mesma maneira, falava-se que a redução da tarifa industrial não morde muito na aplicada. Só que se a tarifa sobe muito por causa da crise, vão achar que (o corte antes proposto) tem muito valor. É preciso ver o longo prazo. Para o Brasil, a Rodada Doha traz grandes benefícios na área agrícola e no acesso para seus produtos industriais em outros países em desenvolvimento. E o custo do país na área industrial é francamente modesto. Se o acordo não se materializa, o Brasil não só deixa de ter benefícios, como terá custos, tanto na área agrícola como na área industrial em outros países em desenvolvimento, e nem há necessidade de falar da Argentina.

Valor: O Mercosul não tem uma posição comum em Doha. Até que ponto isso complica?

Lamy: O Mercosul nunca pretendeu ter uma política comercial única. Constato que de um lado há a Tarifa Externa Comum, e de outro não há política comercial comum. Se é bom ou não, não sou eu que vai julgar. Se você olha o Mercosul, vê um mecanismo de integração regional ambicioso, com engajamentos políticos, comerciais etc. Mas vemos que entre as declarações e a prática há uma grande diferença.

Valor: Mas seria desejável o Mercosul com voz única?

Lamy: Do meu ponto de vista técnico, seria lógico ter uma politica comercial comum. Mas reconheço que politicamente isso é complicado. O Mercosul não negocia na OMC com voz única. Outras associações regionais tampouco. No momento só a União Européia faz isso. Os europeus decidiram ter uma política comercial comum quando criaram a Tarifa Externa Comum, em 1957, desde o início e por maioria qualificada. Entenderam que ter TEC e política comercial comum não podia ficar na unanimidade, senão seria a paralisia.

Valor: Qual sua expectativa sobre a nova administração dos EUA, considerando que Barack Obama às vezes foi duro sobre liberalização e levantou necessidade de novas cláusulas em acordos comerciais?

Lamy: Não se pode dizer que a questão comercial teve um papel na campanha eleitoral. Só marginalmente, no Iowa ou aqui e ali. Não é a prioridade número um da nova administração, que tem outras urgências. E depois, em matéria de política comercial externa, a autoridade decisiva não é o governo, é o Congresso.

Valor: Que será controlado também pelos democratas...

Lamy: Os números que examino de perto são a Câmara, o Senado e quem é quem. Porque embora sejam democratas, nem sempre têm a mesma posição na hora de votar. De maneira geral, acho que eles são mais multilateralistas e menos bilateralistas. E questões de desenvolvimento serão mais importantes na visão ideológica da nova administração americana.

Valor: O sr. aposta em acordo ainda na administração Bush?

Lamy: Acho possível, sim, concluir o acordo, que de toda maneira será decidido pela nova administração.

Valor: Barack Obama terá pouco tempo para tentar resolver enormes problemas. Como ele poderia convencer os americanos a se comprometer com abertura comercial, quando os benefícios da Rodada Doha vão demorar anos a surgir?

Lamy: Sim, leva tempo, mas se vemos no longo prazo, de fato o que a nova administração nos Estados Unidos pode mudar na política comercial americana não é tanto sua direção, mas sua aceitação pela população americana. Se ela diminui a insegurança social, aumenta a aceitação de uma política comercial aberta. Quando olhamos o que se passa concretamente nos Estados Unidos, a razão de reticências é de natureza social, não é teórica, política, científica. É por causa da ansiedade que cria a divisão internacional do trabalho, que cria mais emprego do que suprime. Só que quem se beneficia não se manifesta e quem perde sofre estresse e ansiedade. Quanto menor o sistema de seguridade social, maior a dificuldade para gerar políticas comerciais abertas. Se você comparar a capacidade contributiva da economia dos EUA e do Brasil, o Brasil consagra em proporção mais a seguridade social do que os EUA. E no entanto, o Brasil é um país em desenvolvimento, com pobreza enorme.

Valor: Que tipo de resposta à crise financeira é necessária?

Lamy: Se você olha o sistema de governança internacional, vê regulação no comércio, saúde, telecomunicações, qualidade de alimentos e outras coisas muito concretas, mas há dois grandes buracos: finanças e migração. São dois déficits importantes, e no caso das finanças, a crise é a ocasião para fechar esse buraco de governança. Não é por acaso que houve muito debate nos últimos anos sobre coordenação e cooperação, todos esses termos que se emprega quando os países não querem mexer em sua soberania. Mas estabelecer regulação internacional precisa de consenso, o que dá uma "prime" considerável a quem não quer isso.

Valor: Na batalha por regulamentação global, a independência dos bancos centrais é um complicador?

Lamy: Sem dúvida. A primeira questão é se há vontade politica de passar a linha e fazer uma regulação financeira global. É uma questão política fundamental, porque supõe reduzir a soberania dos Estados nacionais.

Valor: Há essa vontade?

Lamy: Vamos ver no dia 15 (data marcada para a reunião de cúpula dos países do G-20 em Washington). Segundo, qual é o conceito de regulação? Se aplicado diretamente, se adotado nos diferentes sistemas nacionais, se ficam nos princípios. Na área financeira, me parece que os princípios estão claros: transparência, previsibilidade, estabilidade. São aliás similares aos nossos próprios princípios (na OMC). A terceira questão é onde se negocia tudo isso e qual será a autoridade para implementar o que for acertado. É uma engenharia institucional muito importante. Hoje, há o pólo FMI para finanças e Tesouro, e o pólo Banco de Compensações Internacionais (BIS), para bancos centrais e supervisores bancários. Até agora, o debate oscilou entre esses dois pólos. Quando foi criado o Fórum de Estabilidade Financeira, em 1986, durante a crise asiática, esse foro acabou indo para o BIS. A quarta questão é qual tipo de compromisso pode ser feito, para envolver os "constituintes" nacionais. Tudo isso tem conseqüências em termos de políticas domésticas. A soberania nacional será erodida por disciplinas internacionais e, nesse caso, pela regulação financeira. Tradicionalmente, as praças financeiras de Londres, Frankfurt, Tóquio, Hong Kong não vão ter a mesma visão do que é preciso fazer. Elas formatam suas visões conforme seus próprios interesses e levando em conta suas vantagens comparativas.

Valor: Como o sr vê a governança global no médio prazo?

Lamy: Primeiro, é preciso fechar os buracos nas finanças e na migração. É preciso reajustar o sistema de poder que em certos casos data de 1945. O Conselho de Segurança da ONU, FMI, Banco Mundial, começam a envelhecer. Aqui na OMC temos estrutura de decisão por consenso, e reflete bem mais rápido a transformação geopolítica. É preciso reequilibrar. E é preciso tentar melhorar a coerência entre as diversas organizações internacionais. Ao contrário do que muita gente pensa, esse problema de coerência no sistema internacional não é problema das organizações, mas de seus membros (os países). Não tenho nenhum problema de trabalhar com FMI, Banco Mundial, OIT etc., e nem eles. Mas somos limitados no que podemos fazer juntos, pelo limite de nossa autoridade executiva. Há um verdadeiro problema, porque nada obriga a ter coerência. Quem vigia o que faz cada membro em cada uma dessas organizações? Há exceções, como Noruega, Suécia, onde há comitê do Parlamento que verifica, mas é excepcional. Seria preciso que a coerência fosse reconhecida como um valor agregado.

Valor: Como o sr. vê países como o Brasil e outros emergentes na nova arquitetura financeira?

Lamy: A grande diferença é que eles fazem forçosamente parte dela. Há um novo dado geopolítico que é incontornável. É preciso traduzir isso na regulação, é um compromisso político, que é um reflexo da relação de forças. Mas acho que isso vai levar um certo tempo, porque os países emergentes são intelectualmente e ideologicamente menos inclinados que os europeus, e mesmo os americanos, a essa questão supranacional. Sua cultura internacional não é ainda supranacional, até por uma razão simples: até o presente, eles não eram muito convidados onde se discutia o supranacional, salvo em tratados clássicos, como desarmamento. Quando olhamos o tratado sobre desarmamento, achamos que a OMC avança na velocidade da luz. O sistema da OMC funciona. Ouvimos de todos os lados na preparação do encontro de cúpula do G-20 que é preciso na área financeira algo como a OMC, com regras, vigilância. É estranho essa paradoxo. Temos dificuldade em concluir a Rodada Doha, porque há compromissos difíceis a serem feitos, mas todo mundo só fala em imitar a OMC. Eu vejo isso com certo humor, porque a OMC tampouco é um modelo perfeito nem totalmente reproduzível. Mas temos os princípios de base para a regulação supranacional. Quando o país aceita disciplinas. E temos o conceito, de que abertura dos mercados, quando gradual e controlada, funciona.