Título: Bolsa Família desbanca cana em Alagoas
Autor: Maceió , Paulo Totti
Fonte: Valor Econômico, 11/11/2008, Especial, p. A12

A cana-de-açúcar, mais tradicional atividade econômica de Alagoas, não é mais a que mais contribui para a economia de Alagoas. Depois de tantos "mais", os ricos usineiros - e também os já não tão ricos - passaram a conviver com o advérbio "menos". Nos últimos anos, e acentuadamente durante o mandato do atual governo federal, os donos do açúcar tornaram-se menos importantes do que os beneficiários do Bolsa Família, menos importantes do que os aposentados da Previdência Social, menos importantes até que os desempregados. Hoje a economia alagoana depende mais destas três categorias e menos dos usineiros.

O poder político, exercido por elas próprias ou por seus delegados, continua monopólio das famílias de usineiros, mas até isso começa a ser questionado. Na periferia das grandes cidades, no Sertão, no Agreste e nas barrancas do São Francisco, os coronéis da cana ainda ganham eleições, mas sua influência já é menos decisiva e constata-se que, proporcionalmente, há menos votos em seus currais de eleitores. Programas federais, como a Previdência Social, o Bolsa Família e até o seguro desemprego, injetam mais dinheiro em Alagoas do que a massa salarial produzida pela cana-de-açúcar.

Uma tonelada de cana-de-açúcar, por exemplo, começa a ser paga a R$ 3 e esse valor pode chegar a R$ 4,5 dependendo da produtividade de cada trabalhador (acordo coletivo da categoria, em vigor na atual safra). Como serão colhidas 30 milhões de toneladas pelos cerca de 100 mil trabalhadores do setor (trabalho concentrado nos meses de safra, setembro/março), a massa salarial gerada na principal atividade agrícola do Estado chegará a R$ 100 milhões. O Bolsa Família transfere por mês R$ 30,7 milhões a 356,5 mil famílias, beneficiando em torno de 1,4 milhão de alagoanos. Num ano (não há 13º), o Bolsa Família irrigará Alagoas com R$ 368 milhões, três vezes e meia os salários provenientes da cana-de-açúcar.

O quadro do seguro desemprego é semelhante. No ano passado, 65 mil alagoanos receberam R$ 134 milhões do seguro-desemprego, um terço a mais do que os cortadores de cana.

Maior é a contribuição da Previdência Social. Todos os meses, 381 mil famílias recebem R$ 188 milhões - média de R$ 494,52 por aposentado ou pensionista, em agosto de 2008. Num ano, com o 13º, a Previdência beneficiará cerca de 1,5 milhão de alagoanos, quase metade da população do Estado, com R$ 2,4 bilhões - mais de 20 vezes o pagamento da cana. A arrecadação da Previdência no Estado é de apenas R$ 400 milhões. O déficit de R$ 2 bilhões, que torna aposentados com salário mínimo os cidadãos mais ricos de vilarejos e cidades do Sertão, tem sido considerado "generosidade irresponsável" por alguns economistas neoliberais.

Filiado a outra corrente, a dos que atribuem ao Estado a responsabilidade de, com políticas públicas, amenizar desigualdades sociais, especialmente no Nordeste, o economista Cícero Péricles, da Universidade Federal de Alagoas, constata: "Desde meados da década de 90, mais da metade dos recursos manejados pelo Estado vêm de Brasília. É a parceria silenciosa e socialmente positiva". Cícero dá o exemplo de Inhapi, município do interior, que, em 2003, contribuiu com R$ 41 mil para a Previdência e recebeu dela R$ 3,5 milhões.

Cícero Péricles considera que, com o dinheiro do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), do Bolsa Família e também do Fundo de Participação dos Municípios (formado por 22,5% da arrecadação do Imposto de Produtos Industrializados, IPI, e do Imposto de Renda, IR, com distribuição obrigatória de 35% no Nordeste), "é que se movimenta o comércio local e também a máquina pública, pagando-se a folha de pessoal e outras despesas de centenas de municípios do Nordeste, inclusive capitais".

A parceria inclui outros programas de menor volume financeiro, mas de importante impacto social como o microcrédito do Banco do Nordeste, o Pronaf, que financia e agricultura familiar, e o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb), que financia a pré-escola, o ensino fundamental e o ensino médio.

Sem a Previdência, as transferências federais para Alagoas e seus municípios, em 2007, foram de R$ 4,1 bilhões. Para este ano, a previsão está em torno de R$ 5 bilhões. Mesmo crescente, a arrecadação da União em Alagoas será de R$ 1 bilhão - um déficit de R$ 4 bilhões, o dobro do já acumulado com aposentadorias e pensões. Mais um exemplo: a Prefeitura de Maceió arrecadou de impostos, em 2005, R$ 125 milhões e recebeu da União, em transferências e repasses, R$ 480 milhões Toda essa dependência de recursos federais é demonstração da enorme fragilidade da economia de Estados e municípios do Nordeste - não só de Alagoas - e também da necessidade de sua continuação, enquanto investimentos privados não forem suficientes para impulsionar a economia por um caminho auto-sustentável. Provavelmente a sustentabilidade só será alcançada se o socorro federal continuar - como o deficiente visual que precisa de óculos para encontrar os próprios óculos.

O governador Teotônio Vilela acredita que um Estado austero e modernizado, com excelência de gestão, pode atrair investimentos e acabar com a situação de "desgarrado" da federação com que Alagoas se apresentava há dois anos. Cícero Péricles não subestima os propósitos do governador nem descrê de seus resultados, mas observa que nos últimos anos se acentuou a "federalização" do Estado, o que permitiu a ampliação do mercado interno e a "abertura de janelas" para "superação de um modelo de crescimento desigual e excludente". Por isso, defende a "radicalização" das relações Estado/União, "um aprofundamento de dependência que só beneficiará Alagoas".

Em livro que escreveu no ano passado "Economia popular - uma via de modernização para Alagoas" , presente nas mesas de executivos e autoridades do Estado, Cícero Péricles recomenda: "A alavanca para esse processo (o salto do Estado para o século XXI) é a aliança firme com o governo federal". A perda de importância econômica dos usineiros e a emergência de novos protagonistas da política - as centenas de milhares de pessoas, através das quais o governo central oxigena a economia alagoana, e que já não necessitam do "favor" do coronel para sobreviver - pode provocar, ou já provoca, mudanças no cenário de distribuição de poder.

Um indicador dessa situação pode ser o prefeito de Maceió, Cícero Almeida (um populista do PP, reeleito com mais de 80% dos votos). É um caso raro de importante político alagoano em cuja reconhecida ascendência não há senhores de engenho. (Na última metade de século, Sebastião Marinho Muniz Falcão seria outra exceção. Eleito governador com apoio do então presidente Juscelino Kubitschek, recebeu impeachment da Assembléia em 1957, numa sessão em que um deputado foi morto e outro ferido. Na mesma sessão o repórter Márcio Moreira Alves, do "Correio da Manhã", estava na tribuna de imprensa e levou um tiro. Novamente eleito governador em 1965, Muniz Falcão foi impedido de assumir pela ditadura militar. Era natural de Araripina, Pernambuco. Sem ligação com os usineiros, estes o acusavam de "forasteiro").

As mudanças, incipientes, não impedem Alagoas de continuar com forte representação política nacional, superior à sua importância econômica. O Senado é o exemplo mais eloqüente da liderança política vinculada à economia da cana. Ali têm assento Renan Calheiros (PMDB), Fernando Collor de Mello (PTB) e João Tenório (PSDB). Este último, desconhecido no sul do país, é novidade, mas não renovação: usineiro e controlador das indústrias Sococo, é casado com a secretária da Fazenda, Fernanda, irmã do governador e ex-advogada de usineiros. Suplente de Teotônio Vilela Filho, João Tenório sucedeu-o no Senado, quando este se elegeu governador pelo PSDB em 2006.