Título: Crise colocou em confronto Fed e Tesouro
Autor: Hilsenrath , Jon
Fonte: Valor Econômico, 11/11/2008, Finanças, p. C10

Ben Bernanke, presidente do Federal Reserve, o banco central americano, chegou ao fim da linha na tarde de 17 de setembro. A Lehman Brothers Holdings Inc. tinha quebrado. A American International Group Inc. foi efetivamente nacionalizada, recebendo uma injeção de US$ 85 bilhões do Fed. Hordas de investidores abandonavam os fundos de renda fixa. Os mercados de crédito estavam paralisados, as ações despencavam e já se avizinhava uma onda de falências de bancos. Bernanke ligou para o secretário do Tesouro, Henry Paulson, ex-jogador de futebol americano na faculdade e ex-executivo de Wall Street, conhecido pelo temperamento forte. Dono de uma voz às vezes trêmula, o acadêmico da Universidade de Princeton se aproximou do viva-voz na mesinha de café do escritório e falou a Paulson num tom direto incomum. Joshua Roberts / Bloomberg News

Henry Paulson (à esquerda) deve deixar o governo, mas Ben Bernanke, presidente do BC americano, cujo mandato vai ainda até 2010, continua a bordo

O Fed estava no limite e não podia fazer mais nada, disse Bernanke. Apesar de Paulson ter resistido durante meses, Bernanke disse que estava na hora de o secretário do Tesouro ir ao Congresso americano pedir fundos e autoridade para um socorro mais amplo. Paulson não concordou imediatamente, mas na manhã seguinte entregou os pontos.

Em público, Bernanke e Paulson marchavam juntos. Mas nos bastidores os dois e seus respectivos assessores às vezes entraram em conflito - em relação ao destino da Lehman Brothers e aos limites da autoridade do Fed. Às vezes eles se sentiam com as mãos atadas pelos limites legais de seus cargos e pressionavam um ao outro para agir mais agressivamente. As discussões também acabaram criando várias estratégias que em alguns momentos semearam uma certa confusão sobre a abordagem de Washington e geraram críticas aos dois homens mais importantes da economia americana num momento em que a principal prioridade era restaurar a confiança.

As tarefas mais urgentes para a nova equipe econômica do presidente eleito dos Estados Unidos, Barack Obama, a ser anunciada nos próximos dias, serão acalmar os mercados e escolher quais decisões de Bernanke e Paulson endossar e quais tentar modificar, e como administrar a relação entre o Tesouro, a Casa Branca e o Fed depois da posse. Paulson deve deixar o governo, mas Bernanke, cujo mandato vai até 2010, continua a bordo. Uma peça importante será Timothy Geithner, caso continue na presidência do Fed de Nova York ou suceda a Paulson. Geithner, um dos mais importantes administradores de crises do Fed, integra o seleto grupo de finalistas da lista de Obama para ser o ministro da Fazenda, ou seja, para chefiar o Tesouro.

O estilo de operação do Fed e do Tesouro espelhava o de seus chefes. No Fed, havia debates parecidos com seminários acadêmicos, com Bernanke dirigindo as discussões mas geralmente sem opinar. O Tesouro, por outro lado, era chefiado ao estilo militar, com Paulson como o general que recebia os informes das tropas, tomava decisões rapidamente e geralmente ligava para saber o andamento de suas ordens apenas algumas horas depois de emiti-las. Raramente os dois permitiram que as diferenças viessem à tona. "Bernanke é um cara muito cuidadoso, e eu acredito que, se discordasse de algo, ele primeiro falaria a Paulson sobre isso", diz o presidente da Comissão de Serviços Financeiros da Câmara, o democrata Barney Frank. "Ele não iria diretamente a nós."

As decisões da dobradinha Bernanke-Paulson deixaram muitas dúvidas. Por que eles deixaram a Lehman Brothers entrar em colapso apenas seis meses depois de decidir que a concorrente menor Bear Stearns tinha de ser socorrida? Por que eles não apelaram ao Congresso antes? Quando finalmente foram ao legislativo, por que Paulson argumentou contra uma proposta do Fed - de injetar capital nos bancos - que acabou aceitando poucos dias depois?

Este relato de dias cruciais em setembro e outubro é baseado em entrevistas com autoridades, políticos e outros envolvidos. Antes de telefonar para Paulson, em 17 de setembro, Bernanke reuniu seus assessores mais graduados, como o vice-presidente do Fed Donald Kohn, veterano do banco, e Kevin Warsh, governador do Fed que se tornara a ponte entre Bernanke e Wall Street. Geithner participou via teleconferência.

O mercado de crédito de curto prazo estava paralisado. As autoridades do Fed acreditavam que os problemas exigiam mais do que a função apropriada a um banco central - fornecer empréstimos de emergência para instituições sadias em períodos turbulentos. O Fed não foi criado para socorrer empresas em apuros; isso é papel do Tesouro e do Congresso. As autoridades do Fed argumentavam que os poderes emergenciais do BC não permitiam a compra de ativos. E o próprio balanço do banco já estava apertado por causa de outros socorros. O pessoal do Tesouro, por outro lado, defendia que o Fed tinha autoridade ampla e poderia absorver diretamente os ativos podres dos bancos, sem aprovação do Congresso.

Paulson, Bernanke e outros já debatiam a questão havia semanas. Paulson queria evitar o Congresso, especialmente após sair de uma audiência em julho com a impressão de que seus poderes não seriam ampliados. Paulson temia que pedir aos políticos o poder para comprar centenas de bilhões de dólares em ativos pudesse incitar o pânico e empurrar a economia para a recessão. Ele também temia que o Congresso negasse o pedido, aumentando ainda mais o problema. As autoridades do Fed resolveram pressionar o Tesouro a ir ao Congresso imediatamente. No telefonema a Paulson em 17 de setembro, Bernanke disse que apoiaria publicamente a medida, o que o colocou no centro do que provavelmente seria uma acalorada briga política. Paulson não se comprometeu na hora, ainda apreensivo com a possibilidade de rejeição do Congresso ao plano. Mas, em seu escritório, ele também assistia à queda nas bolsas e à paralisação do mercado de crédito.

No início da manhã seguinte, Paulson disse a Bernanke que estava pronto a recorrer ao Congresso por dinheiro público e que gostaria de fazê-lo já naquela tarde. Paulson já tinha iniciado os preparativos, determinando a sua equipe que preparasse planos emergenciais para uma crise. Dois de seus assessores tinham rascunhado algumas opções, como comprar créditos de recebimento duvidoso dos bancos, comprar participações nos bancos e garantir as hipotecas. Dentro do governo de George W. Bush, esse plano era chamado de "quebre o vidro". Eles não esperavam usá-lo.

Paulson achava que os bancos poderiam desovar títulos garantidos por hipotecas e outros ativos problemáticos contidos em seus balanços e, assim, levantar capital e reiniciar o crédito. Ele temia a alternativa de injetar capital diretamente nos bancos e achava que o governo seria forçado a definir quem ganharia e quem perderia e que os bancos iriam guardar os recursos em vez de emprestá-los. Paulson achava também que pedir ao Congresso o direito de investir diretamente nos bancos afastaria os investidores, temerosos de que o governo diluísse suas participações. Em abril, Paulson tinha eliminado todas as opções de sua lista, exceto uma: comprar os ativos.

A equipe do Fed também passara meses estudando as opções. Bernanke concordou que comprar os ativos poderia ser uma ferramenta útil. Mas ele também achava que o Tesouro talvez pudesse ter de investir diretamente nos bancos, abordagem adotada por Suécia, Japão e outros países em crises financeiras anteriores. Por volta da meia-noite do sábado, 20 de setembro, autoridades do Tesouro americano enviaram por email uma proposta legislativa para vários gabinetes do Congresso, solicitando poderes para dispor de US$ 700 bilhões para comprar ativos de instituições financeiras, com poucas restrições e pouca fiscalização. Paulson tinha feito muito pouco trabalho preliminar sobre a questão no Congresso, temendo que falar sobre um possível pacote de resgate financeiro pudesse ser contraproducente se a notícia vazasse. Sua proposta deflagrou uma reação contrária quase imediata.

Paulson queria flexibilidade para utilizar o dinheiro da maneira que julgasse adequada. Em particular, disse à sua equipe que poderia ser necessário aplicar injeções de capital. Em suas declarações públicas, porém, praticamente excluiu essa opção, definindo-a como algo que um governo faria para salvar instituições à beira do colapso, não para as instituições solventes que desejava auxiliar. Bernanke, por sua vez, em declarações ao Congresso, ressaltou que o Tesouro precisava de flexibilidade para investir diretamente e desejava poder mudar de tática, se necessário. O Congresso rejeitou o plano alguns dias depois dessas audiências. Em meio a essa confusão, os legisladores perderam um tempo precioso. Entre 18 de setembro, quando Bernanke e Paulson se dirigiram ao Congresso pela primeira vez, e 3 de outubro, quando a legislação do plano foi aprovada, o mercado acionário americano perdeu cerca de US$ 1,5 trilhão.

De certa forma, os EUA agiram com presteza. O Fed cortou as taxas de juros muito antes dos bancos centrais de outros países. Segundo Bernanke, que é especialista na Grande Depressão, as autoridades americanas também estiveram à frente de outras maneiras. No Japão nos anos 90 e nos EUA nos anos 30, os legisladores só começaram a reparar o sistema bancário depois que muitos bancos já tinham entrado em colapso. "Essa não é a situação que enfrentamos hoje", disse Bernanke em um discurso em Nova York, no mês passado. Desta vez, segundo ele, as medidas para corrigir os problemas bancários tinham sido "rápidas e decisivas".

Algumas pessoas de fora desse círculo questionam essas afirmações. "A política de intervir o mínimo possível fez com que nós estivéssemos sempre um passo atrás", diz Raghuram Rajan, da Universidade de Chicago, ex-economista-chefe do Fundo Monetário Internacional.