Título: (Des)alavancagem é a palavra-chave
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 13/11/2008, Opinião, p. A10

O Banco Central do Brasil tomou recentemente várias medidas para aumentar a liquidez dos sistema bancário brasileiro, em reação à crise de crédito e liquidez que se iniciou no sistema de hipotecas norte-americano e se espalhou pelo mundo. É oportuna uma breve recapitulação da sequência de medidas que foram adotadas pela autoridade monetária no Brasil: aumentos sucessivos da dedução do depósito compulsório e da exigibilidade adicional sobre depósitos a prazo; dedutibilidade do valor das aquisições de carteiras de crédito de instituições bancárias de menor porte do compulsório devido pelo adquirente; autorização para realização de operações de redesconto com várias classes de ativos; redução de alíquotas de exigibilidade adicional sobre depósitos a prazo e sobre depósitos a vista; e, finalmente, a adoção de um programa de liberação integral de recolhimentos compulsórios e exigibilidades adicionais sobre depósitos, sob demanda. Todos estes eventos aconteceram em um intervalo de pouco mais de três semanas.

Em particular, a autorização para realização de operações de redesconto com um espectro amplo de classes de ativos não líquidos levanta várias questões relevantes para a autoridade monetária. A atribuição de valor a estas carteiras já foi comentada por vários participantes do mercado, preocupados com as metodologias de avaliação a serem utilizadas. Mesmo que as metodologias a serem utilizadas incorporem elementos sofisticados, tais como análise de safras, incorporação de correlações entre bons e maus créditos, as avaliações de preços nas opções embutidas de pré-pagamento, etc, a discussão destes detalhes pode tirar o foco de decisões mais abrangentes e de maior eficácia.

Após a sequência de medidas, surgiram na mídia várias declarações de autoridades de alto escalão indicando que as instituições financeiras não estariam repassando recursos para seus clientes no ritmo esperado. Muito embora a ansiedade seja compreensível, não é razoável esperar que em poucos dias as instituições financeiras sejam capazes de desembolsar tais volumes de recursos de forma segura. A atividade bancária é intensiva em trabalho humano; começando na compreensão das necessidades dos clientes, passando pelo desenho de operações, aprovação em comitê de crédito, cumprimento de requisitos de contratação e desembolso, etc. O ciclo pode durar dias ou meses, dependendo da complexidade das operações.

Devemos nos perguntar se é razoável esperar que os bancos desembolsem estes recursos em novas operações de crédito. Creio que esta expectativa não é realista. Mesmo que o sistema bancário brasileiro não esteja excessivamente alavancado como suas contrapartes americana e européia, é de se esperar que alguma desalavancagem aconteça, com as casas bancárias tentando restaurar sua posição de liquidez dentro de um processo de fuga de investidores e de congelamento das operações interbancárias. A alta dos juros provocou uma perda no valor econômico das carteiras pré-fixadas de crédito, preponderantes nos balanços destas instituições financeiras, e, por conseguinte, no valor do patrimônio das mesmas. Portanto, estas perdas diminuíram o patrimônio das instituições financeiras, aumentando a sua alavancagem, ou seja, a proporção entre seus ativos e seu patrimônio líquido, e conseqüentemente seu risco. O mesmo raciocínio pode ser feito para outros investidores em renda fixa, tais como fundos de pensão e fundos de renda fixa e multimercado.

Ora, em um cenário de resgates de aplicadores mesmo em instituições financeiras de porte intermediário, a atitude mais sensata a tomar em todos os bancos é reforçar o caixa e diminuir desembolsos. Empresas de todo o país, grandes e pequenas, que até há poucos meses podiam tomar com facilidade linhas de curto prazo para resolver um descasamento em seu fluxo de caixa, hoje em dia estão sendo forçadas a quitar suas dívidas com bancos. Ainda conseguimos observar alguns casos de sucesso de rolagem, mas as empresas estão sendo forçadas a apresentar garantias substanciais e ainda assim, pagar spreads maiores. Este processo vai forçar corte de custos e postergação de investimentos de forma abrupta. O resultado macro-econômico que se verá daqui a alguns meses será uma retração na atividade, com redução na formação bruta de capital (assentada sobre importações de equipamentos) e no nível de emprego. A inflação também cederá, embora no curto prazo possa mostrar alta temporária em função da depreciação da moeda.

Portanto, a autoridade monetária está diante de uma paralisação do canal de crédito sem precedentes na história econômica recente. Os investidores típicos em renda fixa, pessoas físicas e fundos, estão direcionando seus recursos para as grandes casas bancárias, em um movimento de "flight to quality" bastante agressivo. Estes recursos estão ficando "empoçados" no caixa destas instituições, que rolam suas reservas nas operações compromissadas de curto prazo junto ao Banco Central, remuneradas à taxa Selic. A solução passa por aumentar os incentivos para que as maiores instituições financeiras se sintam encorajadas a emprestar os recursos disponíveis diretamente ou via instituições de menor porte e que hoje estão sendo rolados nas operações compromissadas junto ao Banco Central a 13,75% a.a. Muito embora soluções pontuais, como direcionar recursos de instituições oficiais a setores específicos ou forçar o repasse de linhas em dólares com utilização das reservas internacionais sejam salutares, o ideal é que sejam adotadas medidas abrangentes que reforcem o patrimônio dos bancos (não apenas sua liquidez) e de outros investidores em renda fixa, pois o reforço do patrimônio diminui o risco e a alavancagem. Uma medida abrangente que terá este efeito é a redução na taxa básica de juros. Por um lado, torna as compromissadas junto ao BC menos atraentes e aumenta o prêmio de risco dos ativos com risco de crédito, e por outro, aumenta o valor econômico do patrimônio de todos os bancos e investidores em renda fixa, gerando as condições para que o canal de crédito seja desbloqueado.