Título: Reprovação no combate à lavagem de dinheiro
Autor: Rizzo, Alana ; Prates, Maria Clara
Fonte: Correio Braziliense, 01/03/2010, Política, p. 2

Com 60,7 mil processos em varas especializadas em apenas 14 estados e no DF, Brasil deixa de punir quem pratica desvios financeiros e levará bomba de grupo internacional

Agentes federais fazem apreensão na Camargo Corrêa: paralisação de ações contra grandes grupos vira exemplo de impunidade

A reprovação do Brasil no processo de combate à lavagem de dinheiro e ao financiamento do terrrorismo pelo Grupo de Ação Financeira Internacional (1)(Gafi), prevista para acontecer em junho, em Amsterdã, na Holanda, é inevitável e de fácil entendimento para qualquer cidadão. Levantamento do número de processos em tramitação nos Tribunais Regionais Federais deixa claro que a aplicação de punição aos réus acusados desse tipo de crime é praticamente impossível no país em razão da falta de estrutura do Judiciário para a análise das ações, além de deficiências na legislação específica. Hoje, são 60,7 mil processos em tramitação nas varas especializadas em lavagem de dinheiro, instaladas em 14 estados e no Distrito Federal, sendo que, em alguns estados, como Minas Gerais, até o fim do ano passado um único juiz era responsável pela instrução de quase 6 mil ações, ou seja, 10% do total no país.

O Gafi produziu o relatório parcial sobre o Brasil depois de ouvir várias pessoas envolvidas no combate ao crime de lavagem de dinheiro. Nele, o grupo cita como exemplo de casos de impunidade a paralisação de ações contra o banqueiro Daniel Dantas, do Grupo Opportunity, e contra a empreiteira Camargo Corrêa, suspensas por determinação das cortes superiores. O relatório do grupo faz menção ainda ao grande escândalo do Banestado, envolvendo remessas ilegais de divisas da ordem US$ 19 bilhões para os Estados Unidos na década de 1990 e descoberta em 2003, mas até hoje sem punições efetivas. O Brasil ainda tem direito de defesa, mas dificilmente reverterá a situação. Na verdade, o puxão de orelhas representará um retrocesso, já que, no passado, o país conseguiu arrancar do rigoroso Gafi um elogio em razão da criação, na Justiça Federal de 1ª instância, das varas especializadas no combate à lavagem de dinheiro.

Questionários

Para fundamentar seu paracer, o Gafi ¿ que tem 40 recomendações para o combate eficaz do crime ¿ preparou relatórios que foram respondidos por representantes de diferentes agências de controle e repressão brasileiros, como o Ministério Público Federal, por meio dos procuradores Carla de Carli, do Rio Grande do Sul, e Vladimir Aras, da Bahia, dois dos integrantes do Grupo de Trabalho em Crimes Financeiros e Lavagem de Dinheiro da Procuradoria da República. Além deles, participaram do trabalho o corregedor do Conselho Nacional de Justiça e ministro do Superior Tribunal de Justiça, Gilson Dipp; o delegado federal Ricardo Saadi chefe da delegacia de Combate aos Crimes Financeiros de São Paulo; o juiz federal Sérgio Moura, responsável pela instrução do caso Banestado; entre outros. Todos os ouvidos agora têm a oportunidade de analisar as conclusões e apresentar seus questionamentos, antes da consolidação final do documento.

Em favor do Brasil, a única mudança de cenário possível é a instalação de mais 230 varas da Justiça Federal em todo o país, a partir do ano que vem. A criação já está aprovada, mas agora um grupo formado por juízes vai decidir quais os estados serão beneficiados. Na verdade, o que se vê é uma guerra nos bastidores em busca de apoio político para a expansão da Justiça Federal nos estados. Em Minas, a reivindicação é que a 4ª Vara da Justiça Federal ¿ especializada em lavagem de dinheiro e a única de um estado com 853 municípios ¿ se torne exclusiva. Além de receber processos de outros crimes, ela também funciona como juizado especial criminal. Até o fim do ano passado, 5.637 ações estavam em tramitação. Agora, com a criação de uma nova vara criminal, o número de processos sobre a lavagem de dinheiro caiu para 1,2 mil. Ainda assim, todos para serem analisados por um único juiz.

Metas específicas

De todas as recomendações do Gafi, o Brasil cumpriu apenas sete. Isso significa dizer que, caso o relatório seja aprovado, ele passará para o regime de follow up, ou seja, passa a ser monitorado, e o país terá que cumprir metas específicas. A queda na conceituação do Gafi , entretanto, pode ter consequências graves, como a redução da credibilidade brasileira nas agências de análise de risco e, ainda, diretamente na vida do cidadão, que pode não ter o paralisamento de obras em razão da negativa de empréstimos internacionais. De acordo com o documento a ser analisado em plenário na Holanda, o grande problema não está na Justiça de 1ª instância e sim nos tribunais superiores, onde, segundo o grupo, falta experiência para tratar os casos.

Além disso, para os representantes do Gafi, que visitaram no Brasil nos meses de outubro e novembro, o excesso de recursos permitidos pela legislação é outro grande entrave. ¿Há elementos estruturais no sistema jurídico e institucional da Justiça criminal que prejudicam a capacidade das autoridades de perseguir e obter condenações definitivas para os crimes de lavagem e financiamento de terrorismo¿, diz o texto. ¿O Brasil possui um complexo sistema de recursos judiciais, de regras de prescrição e uma aplicação extremamente liberal dos direitos do réu¿, acrescenta.

1 - Fiscalização O Gafi é um órgão intergovernamental criado por países do G7 com o objetivo de fixar e fiscalizar a política global de combate à lavagem de dinheiro e financiamento ao terrorismo. Atualmente, são membros do Gafi a União Europeia e outros 34 países, incluindo o Brasil, organismos internacionais, como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI). Além disso, 180 países seguem as normas estabelecidas pelo grupo. Países que não cumprem as determinações podem ser punidos com sanções econômicas e passam a ser monitorados por membros do Gafi.

Legislação liberal dificulta punições

O procurador da República de Minas Gerais Rodrigo Leite Prado, que faz parte do grupo especializado em lavagem de dinheiro, concorda com a conclusão do Gafi em relação à liberalidade da legislação e critica a sacralização dos direito individuais. ¿Hoje, o direito penal deve proteger o cidadão em face de um suposto `estado policialesco¿ em vez de proteger o cidadão contra a prática do crime ou punir condutas tipificadas em infrações penais¿, afirma.

O procurador, que já atuou em casos como o escândalo do mensalão, condena a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de não permitir investigações a partir de denúncia anônima, como aconteceu com o caso da Camargo Corrêa, que teria destinado recursos a políticos. ¿Esse é um tipo de crime no qual dificilmente o informante terá coragem de se identificar, o que dificulta ainda mais as apurações¿, lamenta o procurador.

Em relação aos investigados, Rodrigo Prado lembra que a legislação brasileira é tão benevolente que permite a eles atos impensados em outros países. ¿Aqui, os investigados têm o direito de mentir perante a Justiça, enquanto nos Estados Unidos o mesmo ato é considerado crime de perjúrio¿, afirma, lembrando ainda que eles podem ter acesso a investigações sigilosas e até mesmo tumultuar o processo (veja quadro). (MCP e AR)

O que determina a lei

Deveres do Ministério Público (autor da ação penal)

1 - Provar que o investigado tinha ciência de que os recursos eram de origem criminosa;

2 - Identificar e provar quais as funções dentro da organização criminosa desempenhadas por cada um dos investigados;

3 - Identificar qual a parte do dinheiro é suja, quando houver mistura de ativos lícitos e ilícitos;

4 - Fundamentar, diante da notícia de operação financeira suspeita, cada pedido de quebra de sigilo bancário;

5 - Produzir provas somente a partir de informações de autor devidamente identificado;

6 - Justificar, a cada 15 dias, as razões para o prosseguimento do monitoramento telefônico dos investigados;

7 - Recorrer apenas de alguns tipos de decisão;

8 - Enfrentar os problemas estruturais das agências de repressão e controle de lavagem de dinheiro (Polícia Federal, Justiça, Receita, Banco Central, entre outros) para evitar a prescrição dos crimes;

9 - Garantir ao investigado a defesa adequada.

Direitos do investigado

1 - Mentir para não fazer prova contra si (nos Estados Unidos, essa prática é considerada crime);

2 - Fugir sem ser punido posteriormente;

3 - Ter acesso a investigações sigilosas e aproveitar-se de vazamentos sigilosos;

4 - Produzir provas potencialmente protelatórias, como tumultuar o processo com a troca de advogados, a substituição de testemunhas, os pedidos de adiamento de audiências, entre outras;

5 - Interpor um número indefinido de habeas corpus em face de qualquer ato que prejudique seus interesses;

6 - Ser condenado a uma pena mínima e, caso contrário, o juiz é obrigado a justificar cada dia de acréscimo;

7 - Ter as penas de prisão inferiores a quatro anos substituídas por prestações pecuniárias ou serviços à comunidade;

8 - Ter progressão de regime a cada um sexto da pena.

Fonte: Ministério Público Federal (MPF-MG)