Título: A crise financeira mundial e o microcrédito no Brasil
Autor: Gonzalez , Lauro
Fonte: Valor Econômico, 20/11/2008, Opinião, p. A8

É visível a evolução recente do microcrédito no Brasil. E já é possível falar até da existência concreta de um mercado de crédito para populações vivendo em situação de pobreza, geralmente excluídas do sistema financeiro tradicional. O atual desenrolar dos fatos de dimensão mundial, dá pouco espaço para falar de imunidade de países e, mais ainda, de setores específicos da economia à crise financeira atual, sistêmica e de dimensões mundiais. Marolas em meio à tempestade são bazófias e é preciso lembrar que eventos adversos tendem a afetar de maneira mais forte parcelas menos favorecidas da população. Assim sendo, é relevante avaliar os potenciais efeitos da crise financeira atual sobre o microcrédito no Brasil.

Tal como é conhecido hoje, o microcrédito surge a partir dos anos 70, com a introdução de um conjunto importante de inovações, como empréstimos em grupo, presença de um agente de crédito, foco no crédito para mulheres, freqüência semanal de pagamentos e aumento progressivo do crédito. Estas inovações ganharam notoriedade com o sucesso do Grameen Bank, em Bangladesh, cujo fundador, Mohammad Yunus, ganhou o prêmio Nobel da Paz em 2006.

No Brasil, o conceito de microcrédito remete, via de regra, à modalidade específica de microcrédito para microeempreendedores, o chamado microcrédito produtivo (MP). Apesar de ainda atender uma parcela reduzida do mercado potencial, a oferta de MP tem crescido significativamente acima das demais modalidades de crédito, mesmo em um momento de grande expansão do crédito em geral, conforme ilustrado pela tabela. Boa parte desta expansão só foi possível justamente pela adoção dos mecanismos inovadores do microcrédito. Por exemplo, os empréstimos em grupo, onde os membros avalizam uns aos outros, materializam uma garantia na forma de controle e pressão dos pares, possibilitando ainda reduzir os custos de transação associados à coleta e processamento de informação.

Até que ponto a crise financeira pode comprometer a trajetória ascendente da oferta de microcrédito produtivo? Uma boa estratégia de análise parece ser olhar para os episódios de turbulência financeira passados e seus efeitos sobre o microcrédito. Uma das vantagens desta estratégia é que a ocorrência de crises financeiras não é exatamente uma raridade nas economias de mercado, o que disponibiliza dados históricos de desempenho do microcrédito naqueles momentos "semelhantes" ao atual.

Um estudo recente examinou o desempenho de uma amostra de 671 instituições de microfinanças (IMF"s) no período de crise 1998-2004. Para efeitos de comparação, os autores escolheram uma amostra de bancos comerciais tradicionais de países emergentes. A idéia essencial era examinar, o que tende a acontecer com I) o grupo de IMF"s e II) com o grupo de bancos comerciais tradicionais quando o mercado vivencia fortes quedas. Há alguma diferença detectável, em termos de desempenho, se compararmos estes dois grupos no momento de crise?

A conclusão geral do estudo aponta para um efeito comparativamente menor da crise sobre as IMF"s, que, por estarem menos correlacionadas ao mercado, apresentam menor risco sistêmico. Vale lembrar que a cartilha básica da teoria financeira estabelece ainda um segundo tipo de risco, o do negócio. Como o próprio nome diz, tal risco relaciona-se às empresas especificamente, ou seja, às características intrínsecas de cada negócio. O risco total é a soma do risco do negócio e do sistêmico.

As principais explicações para menor exposição das IMF"s ao risco sistêmico são as seguintes:

I) Os clientes mais pobres tendem a ter mais fidelidade às suas instituições por terem menos oportunidade de acesso a serviços financeiros do que clientes tradicionais. Claro que este efeito é menor para aquelas instituições microfinanceiras focadas nos chamados "menos pobres";

II) Os empréstimos têm prazos médios mais curtos e as parcelas vencem muitas vezes semanal ou quinzenalmente;

III) A metodologia de empréstimo diferenciada, baseada em empréstimos em grupo e na presença de um agente de crédito, tende a produzir menor inadimplência;

IV) Os níveis de alavancagem operacional e financeira das IMF"s tendem a ser menores do que aqueles dos bancos comerciais. No estudo, a relação dívida/patrimônio líquido dos bancos comerciais é cerca de três vezes maior do que das IMF"s;

V) Grande parte dos bancos comerciais é listada em bolsa, ao passo que as IMF"s têm, via de regra, capital fechado e investidores majoritários, inclusive investidores públicos. Portanto, as IMF"s são menos integradas ao mercado financeiro tradicional e, consequentemente, menos sensíveis aos movimentos exagerados dos investidores (overreaction).

A crise boliviana ocorrida entre 1999 e 2001 foi outro interessante laboratório prático para a avaliação das IMF"s nos momentos de crise, sobretudo pelo fato da Bolívia ser sabidamente um país onde as microfinanças se expandiram fortemente. Um exame detalhado do quadro boliviano à época corrobora as evidências do estudo anteriormente citado. As IMF"s menos afetadas pela crise foram aquelas com foco em empréstimos menores, com predomínio de grupos solidários compostos majoritariamente por mulheres.

No Brasil, não há um retrato consolidado de todo o setor. Contudo, há indícios de que as principais IMF"s que atuam no microcrédito produtivo tendem a apresentar características semelhantes àquelas aqui descritas. Por exemplo, os dados atuais do principal programa de microcrédito produtivo do país (Crediamigo) mostram um valor médio de empréstimo de R$ 902, o que corresponde a 9% do PIB per capita. Além disso, 64% dos tomadores são mulheres. Estes dois dados são indicativos de foco nos pobres. Há ainda o predomínio de empréstimos em grupo e a presença do agente de crédito, o que geralmente propicia baixas taxas de inadimplência.

Em grande medida, a expansão do microcrédito produtivo no Brasil tem ocorrido devido justamente às inovações em tecnologia de crédito para os mais pobres. Estas mesmas inovações, conforme evidenciado pelos estudos aqui citados, constituem fator mitigador de risco sistêmico. Excluindo um cenário catastrófico, onde a crise sistêmica atual produza um quadro prolongado de recessão no país, o avanço posto em marcha deverá continuar e, mantida a atual taxa de expansão, haverá cerca de seis milhões de microempreendedores com acesso a crédito em dez anos.

Lauro Gonzalez é professor de Finanças da EAESP-FGV e coordenador do Centro de Estudos em Microfinanças da FGV.