Título: Nós apenas começamos a ver as perdas, diz Calvo
Autor: Vieira , Catherine
Fonte: Valor Econômico, 24/11/2008, Brasil, p. A4

O economista Guillermo Calvo assiste à crise de um lugar privilegiado, não apenas por estar no belo campus da Universidade de Columbia, em Nova York, onde leciona. Ex-assessor do Fundo Monetário Internacional (FMI) e economista-chefe do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) entre 2001 e 2006, o argentino goza de trânsito e prestígio entre acadêmicos e estrategistas das políticas econômicas globais. Em entrevista ao Valor, Calvo disse que a visão não permite otimismo: os efeitos da crise na economia real dos EUA e do mundo estão apenas começando e o que se viu em outubro em termos de pânico e crise de confiança ainda pode ser reprisado. "As condições para que a situação piore ainda estão lá." Leo Pinheiro / Valor

Guillermo Calvo: "O Brasil deve se recuperar mais rapidamente da crise"

Em artigo escrito para uma coletânea de textos com sugestões aos líderes do G-20 (grupo que reúne os países mais ricos e os principais emergentes do mundo), Calvo chegou a afirmar que o controle de capitais poderia ser um instrumento útil para enfrentar a crise em algumas circunstâncias. "Isso foi mais uma provocação", desconversou Calvo, acrescentando que países como o Brasil devem ter muito cuidado com a adoção de políticas não-ortodoxas, para não abalar sua credibilidade.

Ainda assim, ele diz que o momento admite algum uso de políticas não-convencionais, mas recomenda expressamente que isso seja feito com o apoio de organismos como o FMI ou os bancos multilaterais, para sinalizar credibilidade e confiança.

Valor: Michael Spence (Nobel em 2001) disse que a recessão nos EUA e na Europa pode durar dois ou três anos. É uma previsão razoável?

Guillermo Calvo: É muito difícil dizer. Mas creio que 2009 já está perdido. Depois disso não se sabe, a última experiência desse tipo que tivemos foi nos anos 30 e o mundo era completamente diferente. Por outro ponto de vista, quando a Argentina teve problemas sérios em 2002, todo mundo disse que a recuperação levaria anos e na prática ela ocorreu bem rápido. Mas eu tendo a ser pessimista. Quando se tem um colapso de crédito, depende de quão rápido a liquidez vai se reconstruir. Há um cenário que projeta isso para talvez em um ano, porque não apenas política fiscal como também monetária estão sendo usadas. Então há uma chance de que talvez possamos voltar a crescer no início de 2010.

Valor: O que explica a magnitude desta crise?

Calvo: Houve uma expansão de crédito por instituições que não estavam protegidas e, quando elas tiveram problemas, não havia uma maneira automática de prover liquidez. O Fed (banco central dos EUA) e os outros BCs foram muito rápidos no socorro e ofereceram taxas de juro mais baixas para os bancos sobre os quais eles tinham responsabilidade, mas não sobre os outros. Quando os outros começaram a ter problemas, eles foram resolvendo um de cada vez, e não de forma sistêmica. Ou seja, foi uma atuação semelhante à do FMI quando vai socorrer um país, mas normalmente não funciona. Ele dá liquidez, mas já é tarde.

Valor: E isso agrava o risco sistêmico?

Calvo: Pode agravar, porque se o problema não é resolvido de uma só vez, você vê o Bear Stearns e aí começa a olhar em volta e se perguntar: quem vai ser o próximo? E, nesse meio tempo, ninguém empresta para ninguém porque não se sabe quem vai ser o próximo. Não há uma solução sistêmica, apenas caso a caso. Essa é minha interpretação de porque isso se tornou tão complicado.

Valor: Então o sr. não crê que se chegou ao fundo do poço?

Calvo: Do ponto de vista do setor real da economia, nós apenas começamos a ver as perdas. O desemprego nos EUA começou a dar sinais agora e a crise começou há um ano ou um ano e meio.

Valor: Mas em termos do pânico e de crise de confiança, podemos ainda ver algo pior do que se passou em outubro, por exemplo?

Calvo: Isso é muito difícil de dizer, mas as condições para que a situação ainda piore estão lá. O subprime (hipotecas de alto risco) não é o fim da história, há os chamados leverage buyouts (aquisições alavancadas) e os private equity (fundos de participações) que compraram empresas com dívidas. E agora a economia vai ter problemas, então elas vão perder valor, mas as dívidas ainda estão lá. Então poderia haver uma nova onda de quebras.

Valor: Por que os capitais buscam os títulos do Tesouro dos EUA, justamente o centro da crise?

Calvo: O ponto é que ainda existe um sentimento do mercado de que esse centro ainda é muito poderoso, de um ponto de vista econômico, e que se ele for arrastado vai carregar os mercados emergentes. Especialmente dado que os sinais são de que não há nenhum descolamento e por causa disso os investidores se sentem mais confortáveis com o dólar. Isso não tem nada a ver com os fundamentos do Brasil, que são muito bons. O Brasil deve ser um dos países que vão se recuperar mais rápido.

Valor: O sr. mencionou que algumas políticas não convencionais poderiam ser usadas nesse momento. Quais seriam elas?

Calvo: É preciso ser muito cuidadoso, mas políticas não-convencionais poderiam ser, por exemplo, usar as reservas internacionais para dar crédito ao setor exportador. É uma boa idéia, porque se usa dólar para gerar mais dólares. É uma forma de usar as reservas para pelo menos acolchoar uma parada súbita de fluxos de capitais.

Valor: Numa compilação de artigos de economistas com sugestões para o G-20, o sr. mencionou que o controle de capitais poderia ser usado em alguns casos.

Calvo: Bem, eu tinha um espaço pequeno e tinha que usar poucas palavras, por isso mencionei controle de capitais, foi mais como para desafiar os especialistas, uma provocação. Mas é preciso ser muito cuidadoso com isso porque não se quer dar a idéia de que a política econômica foi abandonada, não se deve despejar toda a credibilidade que foi acumulada. Seria melhor, por exemplo, recorrer ao FMI ou a outras instituições internacionais.

Valor: O sr. acha que o Brasil deveria usar estímulos fiscais e monetários para enfrentar a crise?

Calvo: Eu acho que estamos num colapso de crédito e a primeira linha de ação que se deve tomar é para destravar os canais de crédito. Acho que é importante ter cuidado com política fiscal ou monetária nesse sentido. Não estou muito confiante de que são efetivas, nós estamos vendo isso nos EUA e, nós vimos isso no Japão, e o tipo padrão de política fiscal, de estimular a demanda agregada, não estou certo de que isso vai funcionar. Eu diria que essa é a hora de trazer os organismos multilaterais. Não façam nada sozinhos, seria arriscado.

Valor: Para alguns especialistas, as reservas brasileiras seriam suficientes apenas no curto ou médio prazo. O sr. acha que o país vai precisar ainda mais do que tem?

Calvo: Sim, mas eu espero que não precisem. Enfim, o mundo está entrando numa recessão global, o Brasil é uma parte do mundo. É preciso ser criativo e entender a situação. Seria um erro sair gastando tudo sem foco ou baixar os impostos, por exemplo. Eu não acredito que isso funcione.

Valor: Com a desvalorização do real, já há quem tema pela inflação e vislumbre a necessidade de uma alta de juro. O sr. concorda?

Calvo: Não acompanho isso de perto. Mas não se deve cometer o erro de pensar que o Brasil está na situação em que estava um ano atrás. O mundo está entrando numa recessão e numa política de taxas de juros baixas e expansão fiscal. Ok, o Brasil não pode fazer muito disso, mas fazer o oposto? Talvez a inflação possa subir, mas estamos passando por um período muito especial, em que se deveria se preocupar mais com o emprego do que com isso.

Valor: O sr. crê que a administração Obama vai ser bem-sucedida no enfrentamento da crise?

Calvo: Ninguém sabe como será. Eu não sei quem é Obama. Não estou tão confiante de que ele poderá fazer muito, não é culpa dele, ele não é economista. Eu não estou dizendo que ele não entende as coisas, mas ele ainda não teve a chance de mostrar.

Valor: Ele será protecionista?

Calvo: Protecionismo é algo que talvez ele possa deixar para depois. Num primeiro momento, acredito que ele vai focar numa expansão fiscal muito agressiva.