Título: Oportunidades da crise
Autor: Levy , oaquim
Fonte: Valor Econômico, 25/11/2008, Opinião, p. A10

As reais dimensões da desestruturação da economia mundial ocorrida em outubro passado não são conhecidas, e no Brasil provavelmente não são pressentidas. No entanto, é importante nos prepararmos para um novo mundo.

As primeiras ondas de choque foram obviamente sentidas no mercado financeiro, inclusive nas bolsas de valor. Isto é normal e reflete a expectativa de tempos difíceis à frente, por conta de dois fenômenos simultâneos.

O primeiro fenômeno foi a desarticulação do sistema financeiro que se baseava em uma supervisão frouxa e na expectativa dos bancos terem suficiente capital para suportar qualquer perda de valor dos seus ativos. Essa expectativa se mostrou equivocada, até porque, sob uma supervisão frouxa, os bancos encontraram diversas maneiras de driblar a exigência de capital. E vendeu-se muito a idéia de que a diversificação de risco obtida por estruturas financeiras complexas protegeria os bancos e os investidores que não quisessem incorrer em risco. Recompor o sistema financeiro tomará tempo.

O segundo fenômeno, em parte, explica porque a hipótese da diversificação de risco não se confirmou. A crise atual é uma conseqüência do aperto monetário iniciado no final de 2004 nos Estados Unidos. Naquela época, o Fed sinalizou que queria acabar com o excesso de liquidez que vinha sustentando a economia mundial depois do ataque de 11 de setembro de 2001. O objetivo era fazer um ajuste macroeconômico que diminuísse o desequilíbrio das contas externas dos Estados Unidos, uma reviravolta em relação à posição mantida por Greenspan. Foi um movimento amplamente anunciado e que visava atingir a poupança do americano médio, esfriando o mercado imobiliário e o sentimento de riqueza que alimentava um consumo insustentável. Claro que qualquer coisa que envolva o mercado imobiliário é muito mais poderosa que algo que afete apenas as bolsas. A crise mais uma vez mostrou esse fato, assim como a dificuldade de controlar o processo: as perdas do mercado imobiliário no mundo desenvolvido já são três ou quatro vezes maiores que as perdas das bolsas.

O segundo fenômeno fragilizou as estruturas financeiras porque, sendo o ajuste macro e os EUA uma proporção expressiva da economia mundial, seria muito difícil diversificar esse risco apenas com derivativos. Com isso, o castelo desmoronou.

Mas, não necessariamente se assiste ao fim do capitalismo. Talvez, se assista apenas a mais um exemplo de que é uma ilusão pensar que se pode adiar eternamente um ajuste macroeconômico através da exuberância fiscal e uma política monetária e financeira frouxa, como os EUA vinham fazendo nos últimos anos. Essa exuberância permitiu se manter a ênfase em diminuições seletivas de impostos ao mesmo tempo em que o governo financiava uma guerra e novas despesas domésticas.

A iminência de um ajuste nos EUA, mesmo que amortecido por uma política inteligente de estímulo ao investimento em tecnologia verde e outras medidas que permitam usar a crise para modernizar a infra-estrutura do país cria desafios enormes para o Brasil.

O mais imediato é que acabou o dinheiro barato e agora a taxa de juros da Selic vale para todos. Bancos privados e públicos, empresas, etc. Pela primeira vez a verdadeira taxa de juros do Brasil é a Selic. O que deve levar a um rápido ajuste de seu nível. Até porque o risco Brasil hoje não é tão mais alto que o risco na maior parte dos mercados estrangeiros, o que diminui a chance de fuga de capitais, mesmo que a taxa de juros real caia.

Como vários economistas já avisaram, o único problema nesse cenário seria se o risco interno aumentasse. Por isso, uma coordenação entre relaxamento monetário e disciplina fiscal é absolutamente crucial para o Brasil vencer essa crise sem maiores sobressaltos ou sofrimento.

Disciplina fiscal não quer dizer imobilismo do governo. Quando há um desmoronamento, o governo em geral tem que, ao menos temporariamente, fazer algumas coisas que normalmente são feitas pelo setor privado. Houve um desmoronamento das instituições que apóiam o crédito e a confiança do público nas perspectivas econômicas. Desde os tempos de Sólon, o Estado pode fazer algo nessa hora. O desafio é saber o que fazer.

Evitar o imobilismo no campo fiscal agora é segurar as despesas correntes, e focar ainda mais nos investimentos em infra-estrutura. Mais despesa corrente não faz ninguém acreditar no futuro - e sobrecarrega a dívida pública. Mesmo com taxas de juros mais baixas. Por outro lado, com o encolhimento do mercado mundial, nossas exportações - especialmente de manufaturas - enfrentarão maior concorrência. Assim, diminuir os gargalos da nossa economia e abrir novos campos virou questão de sobrevivência em um mundo que deve continuar globalizado.

O problema do investimento é a dificuldade de executá-lo. Nesse sentido, precisamos reforçar a qualidade de implementação do PAC e aumentar as equipes que garantem o cumprimento dos requisitos ambientais, sociais, antropológicos e todos os outros que são exigidos para levar a cabo qualquer investimento. Fortalecer as agências reguladoras, com escolhas técnicas e de pessoas independentes também ajudará a alavancar o investimento público. E é essencial aumentar o diálogo com as instituições intervenientes para acelerar o processo de decisão. No Rio de Janeiro, a experiência do então secretário Carlos Minc e agora de sua sucessora Marilene Ramos são excelentes exemplos do que pode ser feito em termos de diálogo e cooperação institucional. O Ministério Público, a Justiça e outros agentes do Estado têm que ser parceiros de qualquer política anticíclica responsável que passe por aproveitar a crise para criar um futuro melhor para o país.