Título: Mercado cambial, duendes e jaboticabas
Autor: Castanhar, José Cezar
Fonte: Valor Econômico, 27/11/2008, Opinião, p. A12

Entre 20 de agosto e 20 de novembro o dólar americano se valorizou 46,8%, passando de uma cotação de R$ 1,62 para R$ 2,378 por dólar. No mesmo período, a moeda americana se valorizou 11,7% em relação ao rublo russo e 30% em relação ao peso mexicano, dois outros países emergentes fortemente afetados pela crise financeira internacional. Parece importante examinar as razões dessa queda drástica do real, surpreendente para muitos, tendo em vista o consenso que havia sobre os sólidos fundamentos da economia brasileira.

A primeira e principal razão deveria ser uma forte saída de divisas do país nesse período, o que se refletiria, em última análise, numa redução expressiva das reservas internacionais do país. Porém, quando se examina a trajetória das reservas dos três países emergentes citados no início, constata-se um fato curioso. No período considerado, as reservas russas foram diminuídas em US$ 123 bilhões ou 20% do seu valor inicial, as reservas mexicanas reduziram-se em US$ 14 bilhões (até o final de outubro) e as reservas brasileiras, cuja moeda sofreu a desvalorização mais devastadora, caíram US$ 500 milhões (isso mesmo, milhões e não bilhões de dólares) ou cerca de 0,25% do montante disponível no início do período. Parece, então, que o mercado cambial funciona de uma forma peculiar no Brasil - o preço do dólar se valoriza, mesmo quando a demanda pela moeda é atendida pela oferta privada, ou seja, parece que não segue a universal lei da oferta e demanda. Assim como as jabuticabas, a dinâmica do mercado cambial observada neste período só existe no Brasil.

Poder-se-ia argumentar que o dólar se valorizou tão fortemente no Brasil exatamente pelo fato de o BC não ter vendido reservas, levando a um esgotamento da liquidez da moeda estrangeira no mercado cambial. Ora, quando se examina o fluxo cambial de setembro até a primeira quinzena de novembro constata-se que o fluxo acumulado nesses dois meses e meio foi negativo em apenas US$ 2,7 bilhões. Acreditar que um fluxo negativo de menos de US$ 3 bilhões, em dois meses e meio, num mercado cujo fluxo total (comercial e financeiro) foi de quase US$ 190 bilhões de dólares apenas nos meses de setembro e outubro, poderia provocar uma valorização de 46% no dólar, seria o mesmo que acreditar na existência de duendes.

Coincidentemente, nos meses de setembro e outubro, a posição comprada dos bancos em dólar, o que equivale a um estoque de moeda americana mantido pelos bancos, aumentou em US$ 3,3 bilhões. Esse aumento de posições dá uma pista sobre a principal razão por traz da valorização recente do dólar - um forte movimento especulativo, realizado por alguns bancos, que têm a experiência acumulada e os instrumentos para realizá-lo. A experiência foi adquirida e aperfeiçoada nas turbulências do mercado cambial em 1999 e 2002. O instrumento é o monopólio que essas instituições têm para operar no mercado cambial, que permite não só provocar fortes flutuações nos movimentos diários, como produzir uma liquidez artificial no mercado.

Na versão 2008, esses bancos realizam operações com o BC denominadas de swap (troca entre ativos e passivos) mediante a qual aqueles adquirem ativos remunerados pela variação cambial (que será estabelecida pela valorização do dólar) e, ao mesmo tempo, assumem o compromisso com o BC de pagar uma taxa de juros em moeda local (Selic). Assim, quanto maior a valorização do dólar no período, maior o ganho desses bancos sobre o BC. Para assegurar que a operação resultará em ganhos, os bancos pressionam a demanda pelo dólar no mercado a vista, com operações diárias, aumentando suas posições cambiais compradas. A cada vencimento de swaps a cotação do dólar rompe novas barreiras e os compradores contabilizam lucros crescentes, pagos pelo BC. Como a operação de swap é um contrato de derivativo, não exige capital inicial e possibilita enorme alavancagem, amplificando os ganhos e diminuindo os riscos. Dessa forma, um instrumento criado para regularizar o funcionamento do mercado e atender a empresas que necessitam de proteção contra a valorização do dólar acaba por estimular essa valorização, além de provocar um aumento da volatilidade e da incerteza no mercado.

Curiosamente a solução para o problema é simples e exigiria apenas que o BC usasse a sua caneta, de forma mais contundente, para decretar medidas de caráter regulatório (a maioria delas já adotadas no passado), tais como:

1) Estabelecer um limite restrito para as posições compradas dos bancos;

2) Estabelecer limites para as operações diárias dos bancos no mercado cambial, bem como limites para operações entre instituições;

3) Aumentar a exigência de capital próprio nas operações com derivativos dos bancos destinadas a especular com a variação cambial;

4) efetuar venda de swaps e dólar diretamente para as empresas que comprovarem a necessidade da moeda (existência de passivos registrados no BC ou nos respectivos balanços).

Tais medidas permitiram assegurar o bom funcionamento do mercado, combatendo a manipulação e a sua excessiva volatilidade. Equivaleriam à decisão dos BCs dos países desenvolvidos, no início da crise, de proibir as vendas a descoberto de determinadas ações, exatamente para impedir que o "espírito animal" dos especuladores agravassem ainda mais a situação. Para acalmar os defensores do "livre mercado", esse conjunto de medidas poderia ter um prazo determinado de duração.

Adotar esse tipo de providências exigiria que o BC se livrasse definitivamente da armadilha ideológica na qual tem estado prisioneiro nos últimos dez anos - a de que seu papel é apenas assegurar a estabilidade da moeda, enquanto o mercado fará todo o resto. O mercado é e sempre será indispensável ao bom funcionamento da economia, mas o BC também pode e deve ter um papel fundamental. Num momento de crise como a atual, o BC deve ficar à altura do desafio que enfrenta e esse desafio é muito mais de gestão (o que fazer e como fazer), do que manter fidelidade a princípios econômicos.

José Cezar Castanhar é professor titular da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas (EBAPE) da Fundação Getúlio Vargas