Título: A crise e seus corolários de longo prazo
Autor: Paulo , João
Fonte: Valor Econômico, 01/12/2008, Opinião, p. A10

Da perspectiva de curto prazo a crise já se acha equacionada. As medidas corretoras estão sendo adotadas. Elas podem se revelar suficientes ou não, e seus efeitos podem ser de prazo mais ou menos longo. O importante agora é reconhecer que a profundidade da crise revela sério desajustamento no atual modelo econômico capitalista. Cabe, portanto, indagar o que isso significa. Certo doutrinarismo de esquerda alega estarmos diante do fim do capitalismo. A análise dessa interpretação deve começar com o exame do sucedido na Grande Depressão de 1929.

No século XIX, Marx anunciara o colapso do capitalismo. Segundo ele, a rápida acumulação do capital resultava em grande aumento na oferta de bens, enquanto os salários, pressionados pelo "exército industrial de reserva", permaneciam no nível de subsistência. Ou seja, o incremento do mercado se tornava incapaz de absorver a grande quantidade de bens oferecidos e produziria crises econômicas sucessivas que iriam debilitando o capitalismo até seu colapso final.

Já no último quartel do século XIX, todavia, o rápido crescimento da economia absorvera o excesso de mão-de-obra, fortalecendo sindicatos que passaram a obter elevação de salários proporcional ao crescimento da produtividade. Ou seja, o mercado passou a crescer em ritmo igual ao aumento do produto, desaparecendo a insuficiência da demanda com seu corolário, segundo Marx, de inevitável colapso do capitalismo.

A gravidade da crise de 1929 permitiu à esquerda afirmar que a evolução acima descrita representara apenas adiamento do inevitável colapso do capitalismo. Esse colapso de fato não ocorreu. Com as políticas para minorar os efeitos do desemprego e grandes investimentos em infra-estrutura do New Deal de Roosevelt, a economia americana começou a sua recuperação. As receitas da Teoria Geral de Keynes, para manter a economia em nível de pleno emprego, completaram o processo ao permitirem evitar as recessões periódicas que marcavam o capitalismo. Ou seja, não foi o capitalismo que desapareceu, mas o liberalismo, dando lugar à visão keynesiana de ação sistemática do Estado para corrigir as falhas do mercado.

A crise atual começou a ser gerada como subproduto do fracasso da experiência socialista soviética. Desde o início dos anos 1980, a economia da União Soviética registrava sérios problemas que levaram, no fim da década, ao abandono do modelo socialista. Com isso, a visão liberal voltou a ganhar credibilidade. Com as conseqüências de desregulamentação do sistema financeiro privado, no caso dos países desenvolvidos, e da imposição do receituário do Consenso de Washington aos subdesenvolvidos.

Esta crise teve sua origem nos Estados Unidos, com a multiplicação das hipotecas "subprime", ou seja, com a concessão de empréstimos a devedores incapazes de honrar os compromissos assumidos. Ela ganhou força em função do abuso da securitização dos empréstimos bancários, da multiplicação de derivativos que, supostamente, minimizavam o risco das aplicações financeiras, e da falsa tranqüilidade proporcionada pelas empresas de avaliação de risco. E, como entre as providências corretoras adotadas estava a estatização, total ou parcial, de bancos, e a interferência do poder público no mercado, novamente se voltou a proclamar o fim do capitalismo. Mais uma vez, contudo, a interpretação é falsa, porque as intervenções tópicas realizadas pelos governos são puramente emergenciais e, mesmo que todo o setor bancário seja permanentemente estatizado, ainda assim não se teria rejeitado o capitalismo. Isso porque toda a economia real permaneceria de propriedade privada e comandada pelo mercado. O que realmente está ocorrendo é o abandono do neoliberalismo, nascido nos anos 1990, com a conseqüente volta da visão keynesiana da necessidade da ação pública na regulação de mercados.

O que se pode, sem grande risco, afirmar é que o capitalismo nunca mais será o mesmo. Entre as mudanças prováveis, temos a volta de rigorosa regulamentação do setor financeiro, com o desaparecimento da anomalia consistente no crescimento deste, muito mais rápido do que a economia real. Deverá, igualmente, ser controlado o abuso dos executivos que se locupletavam com altíssimos salários e participação nos lucros obtidos por intermédio de manobras especulativas que colocavam em sério risco as empresas sob seu comando. Regras deverão ser criadas para evitar que ações justificáveis para corrigir crises econômicas resultem em ganhos para os donos e controladores de instituições financeiras mal geridas, em processo que já foi sinalizado como de "privatização de lucros e socialização de prejuízos".

A pergunta que fica é, então, a seguinte: e o que acontece com países subdesenvolvidos, como os da América Latina, que sofreram quase três décadas de semi-estagnação por adotarem, forçados por instituições como o FMI e o Banco Mundial, o receituário neoliberal do Consenso de Washington? Quanto a estes, o que se pode afirmar é que deverão ir além das simples reformas institucionais hoje propostas pelo recém-lançado Consenso de Washington Ampliado, voltando o Estado a comandar estratégias econômicas de longo prazo destinadas a eliminar o atraso econômico no menor tempo exeqüível.

Na prática, uma das mudanças mais imediatas no Brasil, por exemplo, precisa ser a substituição das hoje absolutamente prioritárias metas de inflação por metas de desenvolvimento. Só assim teremos caminho aberto para implementar políticas que nos permitam superar nossa dependência das commodities, para voltar a crescer, como no passado, a taxas anuais de em torno de 7%. Ao mesmo tempo dessa medida, obviamente, seriam adotadas outras destinadas a evitar que as pressões inflacionárias se transformem em inflação aberta.

João Paulo de Almeida Magalhães é presidente do Corecon-RJ (Conselho Regional de Economia do Rio de Janeiro) e do CED (Centro de Estudos para o Desenvolvimento), e doutor em ciências econômicas pela Universidade de Paris 1.