Título: É preciso fechar o "granaduto"
Autor: Claudio Haddad
Fonte: Valor Econômico, 25/02/2005, Opinião, p. A45

Avida do Banco Central é dura. Segundo um ex-presidente do Federal Reserve, a função do Banco Central é retirar a bebida justamente quando a festa está ficando mais animada, o que definitivamente não o torna muito popular. No Brasil, a indústria, cuja reação ao aperto monetário é natural, conta com poderoso aliado para solapar seus efeitos e tornar a vida do Banco Central e a dos outros comuns mortais brasileiros ainda mais difícil. Trata-se do BNDES. Com muita satisfação, o BNDES anuncia que seus desembolsos cresceram 69% em janeiro, com um aumento de 254% em enquadramentos, e que busca desembolsar este ano R$ 60 bilhões, com um incremento de 50% em relação a 2004, que já havia sido um recorde. Tais empréstimos são, em sua grande maioria, indexados à TJLP, que, desde o segundo trimestre de 2004, vem sendo mantida em 9,75% ao ano, ao passo que a taxa Selic, base de captação do governo federal, controlador integral do BNDES, evoluiu, na mesma época, de 16,25% para 18,75% ao ano, com trajetória ascendente (ver gráfico ao lado). Ou seja, enquanto o BC tenta tirar a bebida da sala, o uísque continua entrando, a rodo, pela porta dos fundos, atraindo mais gente para a festa. De onde vem essa "grana" toda? Principalmente do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), municiado com recursos do PIS-Pasep, isto é, do bolso do trabalhador. O BNDES remunera o FAT a, no máximo, 6% ao ano, a diferença sendo capitalizada e emprestada à TJLP. Temos, portanto, um fantástico "granaduto". O dinheiro sai do trabalhador a 6% e é emprestado pelo BNDES à taxa base de 9,75%, enquanto seu controlador integral, o governo federal, tenta enxugar a liquidez pagando 18,75%. O subsídio ao crédito, que chegou ao seu ponto mais baixo de 5,5% ao ano ao final de 2003, hoje já está em 9% ao ano. Mas os empréstimos não representam investimentos novos, o que é bom para a economia? Não necessariamente. Primeiro, porque há, em grande parte dos casos, uma simples substituição de financiamento. Se um projeto é bom e rentável, ele será feito, com ou sem BNDES. A diferença é que sem BNDES ele seria feito com lucros retidos, com outra modalidade de financiamento, ou através do mercado de capitais que, aliás, é subdesenvolvido no Brasil muito em função da alternativa barata do BNDES. Qualquer empresário brasileiro experiente sabe que quem vive pelo subsídio morre por ele. Logo, boa parte dos empréstimos do BNDES está apenas substituindo outros fundos que seriam usados nos mesmos projetos, transferindo apenas renda, nesse processo, do contribuinte e do trabalhador para os acionistas das empresas.

Enquanto o BC tenta tirar a bebida da sala, o uísque continua entrando, a rodo, pela porta dos fundos, atraindo mais gente para a festa

Segundo, no que se refere aos investimentos novos, induzidos pelo BNDES, o problema é de alocação do subsídio. Quem garante que esses projetos são mais meritórios para o país do que os que não foram feitos pela falta de acesso ao BNDES, ou porque tiveram de enfrentar, no caso de investimentos públicos, restrições orçamentárias? Para manter as estradas do país, ou melhorar a educação básica, ambas em estado precário, o governo não tem recursos. Entretanto, sua subsidiária integral esbanja dinheiro em subsídios a todos aqueles que se enquadram em seus programas, com definições de enquadramento cada vez mais flexíveis. Por que aqueles dependem dos orçamentos públicos, e esses, financiados em última instância pelo governo, não? Se vamos subsidiar a indústria, por que não fazê-lo com critério, mensurando e controlando o valor do subsídio e alocando-o explicitamente no Orçamento da União, assim como as demais despesas? A política do BNDES choca-se de frente com a política econômica defendida pelo governo. Se, como alega o Banco Central, a inflação ainda é preocupante (é a sexta maior entre os países emergentes) e, para seu controle, é preciso restringir a demanda agregada, como se justifica essa farra do boi? Como bem alega Eliana Cardoso em artigo recente neste jornal ("Mora na Filosofia", 17/2), a tese de que a inflação deve ser combatida com aumento de oferta já foi, há muito tempo, desmoralizada, tanto pela teoria quanto pelos fatos. Apesar disso, há os que querem reduzir ainda mais a TJLP e aumentar a vazão do "granaduto". Ou seja, querem transferir ainda mais dinheiro do trabalhador para os donos das empresas e tornar a vida do Banco Central e do próprio governo mais difícil. Quanto mais subsídio sair pelo BNDES, maior terá de ser a taxa Selic para dar igual impacto restritivo na demanda agregada. Por conseguinte, maior será o custo para o Tesouro (leia-se o contribuinte) e maior será o preço pago pela esmagadora maioria de não favorecidos, isto é, os sem-BNDES, em termos de produção e emprego. Os custos fiscais e político eventualmente ficarão tão altos que forçarão o abandono da política monetária, pondo a perder todo o trabalho e esforço dos últimos anos. Já vimos esse filme antes, infelizmente várias vezes. O governo precisa decidir se quer continuar a trilhar o caminho da estabilidade, mantendo o apoio e o prestígio que corajosamente tem dado à equipe econômica, ou derivar para o populismo. Caso opte pelo primeiro, é fundamental fechar o "granaduto" do BNDES.