Título: Com Chávez, PDVSA vende até cadeira de rodas na Venezuela
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Fonte: Valor Econômico, 04/12/2008, Especial, p. A14
Ignácio Liñares, casado, pai de duas filhas, estava em busca de um fogão novo para sua casa. Ele se interessou por um modelo de seis bocas à venda no PDVAL, mercado da estatal petroleira PDVSA. A marca do fogão é Famosa, mas a reportagem do Valor não conseguiu encontrar a procedência do produto. Segundo funcionários da loja, as peças são chinesas, mas a montagem provavelmente foi feita por cooperativas populares na Venezuela. Liñares ficou animado com o preço do fogão: 635 bolívares (cerca US$ 130 pelo câmbio paralelo, ou R$ 300), 40% a menos que os "mil bolívares e pico", segundo ele, cobrados nas varejistas privadas.
Como outros clientes, Liñares aproveitou para dar uma olhada nos eletrodomésticos, após sua compra semanal de alimentos no PDVAL que está situado na região de Los Cortijos, uma das mais pobres de Caracas. Esta é uma das lojas administradas pela PDVSA em todo o país que vendem produtos subsidiados. As atividades começaram com alimentos, mas há seis meses também são oferecidos eletrodomésticos nas unidades maiores. Na loja visitada pelo Valor, estavam à venda comida, fogões, geladeiras, lava-roupas, remédios e até cadeiras de roda. Ao terminar de pagar suas contas nas caixas registradoras e verificar o quanto economizaram, os venezuelanos se deparavam com uma foto do presidente Hugo Chávez com o braço estendido e o punho cerrado, cobrindo toda uma parede.
As PDVALs são o projeto social mais visível da PDVSA, mas a estatal também constrói casas populares, ajuda a agricultura e financia as "missões" do governo chavista, uma rede de proteção à população que inclui programas de alfabetização de adultos e a instalação de consultórios médicos nas favelas.
Segundo estimativas de analistas do setor de petróleo, os gastos sociais da PDVSA vão atingir entre US$ 15 bilhões e US$ 20 bilhões este ano, montante parecido com o que a empresa investe em sua principal atividade, a prospecção e produção de petróleo. Em 2007, os gastos sociais da PDVSA ficaram em US$ 14,1 bilhões. "A PDVSA funciona como um orçamento extra para o governo venezuelano", disse Domingos Felipe Maza Zavala, ex-diretor do Banco Central da Venezuela (BCV).
Presidida por Rafael Ramírez, que acumula o cargo de ministro de Energia, a PDVSA subsidia também o consumo interno de gasolina (que custa R$ 0,10 o litro), mas isso não é contabilizado como gasto social. Menos de US$ 3 são suficientes para encher o tanque de um veículo no país. Este incentivo, somado ao crescimento da economia nos últimos anos, transformou o trânsito de Caracas num caos e aumentou as "perdas" da PDVSA, já que esse petróleo poderia ser exportado a preços de mercado. No primeiro semestre do ano, a empresa destinou 572 mil barris por dia ao mercado interno, mais que os 533 mil barris/dia de 2007. O consumo local absorve 17% da produção total da PDVSA.
Outra despesa extra que também não está na conta dos gastos sociais são os projetos de cooperação com países da América do Sul e Caribe. A PDVSA envia petróleo com prazo de pagamento de até 20 anos para Cuba, Nicarágua, Equador, Bolívia e países do Caribe. De acordo com os cálculos do Centro de Pesquisas Econômicas (Cieca), as exportações pelos convênios de cooperação cresceram 18% no primeiro semestre do ano, para 275 mil barris/dia, enquanto as vendas a preços de mercado avançaram apenas 0,23% no período, para 1,73 milhão de barris/dia. Além disso, o presidente venezuelano fez diversas promessas de investimentos nos países aliados. De 2005 até agora, Chávez anunciou cerca de 30 novas refinarias fora do país, apesar de a maioria desses projetos não ter saído do papel.
Com as benesses internas e externas, Chávez transformou a PDVSA em um eficaz instrumento para o seu projeto político de permanecer indefinidamente no poder e se transformar em um líder na América Latina. Com o petróleo a US$ 100 por barril, a estatal resistiu a sangria, mas qual será o impacto agora que o preço de sua principal riqueza recuou para US$ 39 por barril?
"Enquanto os preços do petróleo estavam nas alturas, havia dinheiro para tudo. Agora o governo terá que decidir se a PDVSA vai investir em programas sociais ou na produção de petróleo", disse Ramón Espinosa, economista do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e ex-economista-chefe da PDVSA entre 1992 e 1999. "Quando se utiliza uma empresa pública com funções políticas, a tendência é fracassar", acrescentou Franklin Rojas Penso, presidente do Cieca.
Com a ajuda dos preços do petróleo, os resultados da PDVSA são considerados satisfatórios, mas inferiores ao potencial. Conforme dados do estatuto financeiro da PDVSA elaborados pelo Cieca, a estatal apurou lucro líquido de US$ 9,5 bilhões no primeiro semestre, com receita total de US$ 72,4 bilhões. Com uma receita de US$ 59,8 bilhões, ou seja 17% inferior a da PDVSA, a Petrobras apurou lucro líquido de US$ 10,7 bilhões. "O que temos de mais parecido hoje com a PDVSA de 10 anos atrás, antes de Chávez, é a Petrobras", disse Espinosa. Em 2008, a exportação total da PDVSA em volume deve crescer apenas 3,8%, para 2,894 milhões de barris/dia, segundo estimativas do Cieca. Mas, por conta da alta dos preços no ano, a receita apurada deve aumentar quase 70%.
Os economistas criticam, no entanto, a PDVSA por não estar investindo o suficiente em tecnologia e prospecção. Por isso, sua produção diminuiu. Segundo dados da BP, um dos mais respeitados do setor, a produção da PDVSA recuou de 3,3 milhões de barris/dia, em 1997, para 2,6 milhões de barris/dia no ano passado. Os dados são contestados pelo governo venezuelano (ver matéria abaixo). Pelos cálculos de Espinosa, do BID, o custo de produção do barril duplicou nesse período, de US$ 6 para US$ 13 por conta da sobrecarga de gastos sociais. Zavala, ex-BCV, está preocupado também com o endividamento da PDVSA, porque, apesar dos altos preços do petróleo, o passivo circulante da companhia subiu de US$ 19,1 bilhão, em 2006, para US$ 30,5 bilhões no ano passado. "Há boas razões para se endividar, como elevar os investimentos. Mas não se deve fazer dívida para cumprir compromissos que não são seus."
Para os analistas do setor, a PDVSA também está sofrendo de uma grave problema de foco em seu negócio, o que afeta a produtividade. Além dos programas sociais, Chávez deixou recentemente sob a batuta da estatal a administração de uma série de empresas estatizadas nos setores elétrico, telecomunicações, siderurgia e cimento. Comentando o desempenho fraco do país nos Jogos Olímpicos de Pequim (obteve apenas uma medalha, de bronze), o presidente venezuelano chegou a dizer que a PDVSA se encarregaria também de desenvolver o esporte. Com essas medidas, Chávez tenta trazer uma suposta eficiência administrativa da PDVSA para outras áreas do setor público, que é bastante burocratizado na Venezuela.
No entanto, a capacidade de gestão da PDVSA atualmente vem sendo colocada em dúvida por analistas do setor de petróleo. Depois da greve que paralisou as atividades da estatal há seis anos e abalou o governo, Chávez demitiu cerca de 30 mil pessoas, incluindo técnicos e engenheiros, o equivalente a 50% do quadro de funcionários da PDVSA na época. Na visão dos analistas, as demissões comprometeram a qualidade da gestão da companhia. "Foi um caos na PDVSA", disse Pietro Donatello Pitts, editor-chefe da revista "LatinPetroleum", que trabalhou com analista do setor para o Morgan Stanley nos Estados Unidos.
O embate entre Chávez e a PDVSA é antigo. Formados nas melhores faculdades do mundo, com os custos pagos pelo governo, os executivos da estatal constituíam uma elite na sociedade venezuelana e eram vistos como arrogantes pela população. A gestão socialista de Chávez se chocou diretamente com a mentalidade dessas pessoas, que decidiram desafiar o Estado e convocar uma greve geral em dezembro de 2002. Uma estratégia equivocada da oposição, a paralisação custou a Venezuela US$ 14,4 bilhões, nas contas do governo chavista. Faltou até gasolina nas ruas de Caracas naquela época. Segundo Zavala, as multinacionais realmente tinham uma influência excessiva na gestão da PDVSA no período pré-Chavez. O presidente reverteu o processo em 2001, quando resgatou o controle total da PDVSA, uma medida vista como "positiva" pelo ex-diretor do BCV.
Apesar do impacto da queda do preço do petróleo nas contas da PDVSA, a estatal venezuelana ainda é uma das petroleiras mais cortejadas, porque possui as maiores reservas do planeta, estimadas em 315 bilhões de barris, incluindo a Faixa do Rio Orinoco. Cerca de 50 multinacionais se apresentaram para a concorrência do primeiro lote dessa região, apesar de a PDVSA querer manter maioria nas parcerias.
"As multinacionais sabem que Chávez só vai estar aí por um tempo, mas que a PDVSA e as riquezas da Venezuela vão continuar", disse Pitts. Se depender do presidente venezuelano, que está articulando novamente uma emenda constitucional para se reeleger, isso pode demorar. Procurados pelo Valor por meio da embaixada na Venezuela no Brasil e do ministério do Poder Popular para as Comunicações, a PDVSA e o Ministério de Energia não responderam os pedidos de entrevista.