Título: A transação tributária em Pernambuco
Autor: Carvalho , Maria Christina
Fonte: Valor Econômico, 03/12/2008, Legislação & Tributos, p. E2

O governador de Pernambuco sancionou, em 20 de dezembro de 2007, uma lei complementar que dispõe sobre transação tributária, entre outras providências, a exemplo da dispensa de propositura ou desistência de ações judiciais e recursos, da adjudicação de bens móveis e imóveis, da compensação de créditos inscritos em precatório e de requisições de pequeno valor (RPVs). No dia 28 de outubro seguiu o decreto regulamentador da nova lei. É do que trato no presente artigo.

Ao que parece, afasta-se de percepção reducionista do interesse público fiscal. Reformula-se o papel da administração tributária, que deixa de ser uma mera coletora e que passa também a protagonizar o papel de facilitadora. Resgatam-se possibilidades, em favor do cidadão. Acena-se com eficiência, aponta-se para o direito à boa administração.

Nos termos dessas normas de regência - a Lei Complementar estadual nº 105 e o Decreto nº 32.549 - o procurador-geral do Estado do Pernambuco poderá transacionar judicial e extrajudicialmente, com base em parecer, após a oitiva do órgão ou entidade interessados, bem como de um conselho de programação financeira. Tomam-se cautelas. O modelo é bem engendrado, é um marco regulatório prenhe de medidas de segurança. Remete-se à observância do interesse público e da conveniência administrativa. Distancia-se de uma tipologia fechada, que plasma o interesse público na intransigência. Tem-se uma nova dimensão de discricionariedade, oxigenada pela participação do interessado, do contribuinte, a quem compete também fiscalizar como é cobrado. Mitigam-se alguns focos de tensão. Minimiza-se a demanda dos serviços do Poder Judiciário. Reduzem-se os custos de aquiescência. Persegue-se a eficiência, que deixa de ser um paradigma metafísico da administração pública, inserido em uma cláusula constitucional, plasmando-se em uma medida concreta, realista, de resolução de problemas.

Procuradores de Pernambuco, devidamente autorizados pelo procurador-geral, poderão transacionar no desdobramento de ações judiciais, conquanto que os valores discutidos não ultrapassem a alçada de 40 salários-mínimos. Uma vez que estejam presentes os requisitos para um pacto de transação, o procurador que atue no feito requererá a suspensão do processo. A matéria, então, será submetida ao procurador-geral. Persiste um modelo rígido de controle de passos administrativos, embora se gerenciem resultados, e não procedimentos.

À Procuradoria-Geral do Estado do Pernambuco compete confeccionar o termo de transação. Obrigações recíprocas serão claramente fixadas. Exemplifica-se a transparência do modelo com a obrigatoriedade de se publicar extratos dos termos do acordo no Diário Oficial no que se refere às transações extrajudiciais que impliquem em obrigações pecuniárias para o Estado, suas autarquias e fundações públicas. Dispôs-se também que transações que se reportem a ações judiciais não poderão resultar em dispensas dos tributos devidos, de multas, juros e acréscimos. Excetua-se a regra se a matéria discutida envolver jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) ou de tribunais superiores, desfavorável à Fazenda pública, a par de discussões que envolvam renúncias, por parte dos contribuintes, de eventuais direitos a verbas de sucumbência.

Quando o Estado figurar no pólo passivo da discussão, o termo de transação deverá explicitar a renúncia da parte, no que toca ao direito que substancializa a discussão, a renúncia de propositura de uma outra ação, com o mesmo objeto, além de requerimento para a extinção do processo, com o julgamento do mérito, bem entendido. À Procuradoria-Geral do Estado cabe também, atendido o interesse público e as especificidades do caso concreto, fixar em até 60 parcelas o número de prestações mensais. Nesses casos, a parcela não poderá ser inferior a R$ 100,00. O não cumprimento da obrigação decorrente da transação, por parte do interessado-contribuinte, suscita a retomada da execução fiscal, acrescida de multa de 10%, fixada no termo de transação.

É provocante a iniciativa pernambucana. No Estado de longa tradição de criatividade institucional, que remonta ao Frei Caneca e à Confederação do Equador, abandona-se o fetichismo das fórmulas clássicas. Poder-se-ia objetar que a transação seria uma norma indutora do não-recolhimento voluntário das obrigações fiscais. No entanto, a insistência para com essa premissa negativa é típica da rotina dos subordinados à ditadura da falta de alternativas. Toma-se a parte pelo todo. A razão construída no consenso é triunfante, apresenta resultados, e a experiência fiscal internacional é da premissa indicativo eloqüente.

Presume-se que o modelo se multiplicará. E que especificidades locais determinarão fórmulas que identificarão a criatividade do direito brasileiro. A esperada pulverização de modelos estaduais de transação indicará o dinamismo de nosso federalismo, que se recusa ao constrangimento da reclusão de fórmulas metafísicas de simetria e de paralelismo de fórmulas. O modelo, tal como posto agora no Pernambuco, é transparente e auto-explicativo. Aproxima-se de uma reforma gerencial, cuja necessidade é evidenciada desde os primeiros sintomas de crise da administração pública, ainda ao longo do regime militar. Em âmbito tributário o problema é mais grave ainda. É que é necessário que discutamos também a alocação dos recursos públicos no que se refere à fiscalização e à cobrança.

A iniciativa do Estado do Pernambuco poderá realizar a premonição de Jürgen Habermas, para quem só à luz da esfera pública é que aquilo que é consegue aparecer; tudo se torna visível a todos. Problematiza-se a tese dos descontentes com a transação, que ainda apostam na imprestabilidade das fórmulas inovadoras. Avançam os modelos alternativos. Na advertência de Ovídio, a gota escava a pedra. E na observação do herético Giordano Bruno, não pela força, mas caindo muitas vezes.

Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy é doutor e mestre em direito pela Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo e procurador da Fazenda Nacional em Brasília

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