Título: Transposição leva cizânia ao Nordeste
Autor: Paulo Emílio, Maria Lúcia Delgado, Patrick Cruz e
Fonte: Valor Econômico, 28/02/2005, Especial, p. A16
Os sucessivos adiamentos do início das obras de transposição do rio São Francisco dão sobrevida à guerra federativa que se instalou em torno de suas águas. Dos oito estados envolvidos pela obra, três são nitidamente contrários (Minas Gerais, Bahia e Sergipe), três sãofavoráveis (Ceará, Paraíba e Rio Grande do Norte) e dois partiram de posições de neutralidade e hoje tentam obter investimentos compensatórios pela transposição (Pernambuco e Alagoas). O confronto não é aberto. Os governadores contrários à obra evitam posições hostis em relação aos seus vizinhos e ao ministro da Integração Nacional, Ciro Gomes. Preferem municiar ativistas e mobilizar o aparato jurídico de seus estados. Com o corte orçamentário de R$ 15,9 bilhões anunciado na semana passada, esperam que as verbas destinadas à transposição sejam atingidas. O mais ativo opositor da transposição é o governador de Minas Gerais, Aécio Neves. A Advocacia Geral do Estado aguarda no Supremo Tribunal Federal o julgamento da ação em que Minas pede estudos de impacto ambiental em toda a bacia do rio e não apenas na área em que serão abertos os canais. É de Minas, também, que parte o mais aberto ataque à prioridade do Ceará como beneficiário da primeira etapa do projeto. O secretário estadual de Meio Ambiente, José Carlos de Carvalho, diz que o déficit de água para abastecimento humano só justificaria o eixo leste da transposição. O eixo norte, destinado a abastecer prioritariamente o açude cearense do Castanhão, diz Carvalho, chegará a uma região onde já há água e o que falta é investimento em sua distribuição para a população. A principal bandeira política da transposição, hasteada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva é a de que o projeto levará água para quem não a tem. Nos estados favoráveis à obra, no entanto, os benefícios econômicos da transposição são mais abertamente assumidos. "É uma miopia política ser contra o projeto. É preciso evitar o populismo hídrico", diz o governador do Ceará, Lúcio Alcântara. O vice-governador e secretário de Planejamento, Francisco de Queiroz Maia Júnior vai adiante. Diz que o projeto visa a promover novos pólos de desenvolvimento. "A transposição é um eixo estruturante que vai promover o balanceamento hídrico. A malha de distribuição, a universalização dos serviços de abastecimento e saneamento, os projetos industriais e agroindustriais são uma segunda etapa", diz. O secretário de Recursos Hídricos do Rio Grande do Norte, Josemá Azevedo, é ainda mais direto: "O que há em torno do projeto são interesses econômicos". O Ceará e o Rio Grande do Norte não têm rios perenes. Este último é um dos principais produtores nacionais de melão, fruta oriunda da fruticultura irrigada. O potencial da cultura ainda não é totalmente aproveitado. Segundo o secretário, na Chapada do Apodi, área compreendida entre o Rio Grande do Norte e o Ceará, existem cerca de 300 mil hectares de terras agriculturáveis que não são aproveitadas em função da baixa oferta de água. No Vale do Assu outros 50 mil hectares não são aproveitados pela mesma razão. Em relação a carnicultura, a criação de camarão, os produtores da foz do rio Piranhas demandam cerca de 6 metros cúbicos por segundo, mas a vazão do rio é de apenas 4. "Nós vamos pagar pelo uso dessa água, mas queremos ter o direito de nos desenvolvermos economicamente", diz Azevedo. O governador da Paraíba, Cássio Cunha Lima, outro dos favoráveis à transposição, não escamoteia os benefícios econômicos da obra. "A prioridade é o uso humano, mas também existe o impedimento ao crescimento. Em Campina Grande, por exemplo, o desenvolvimento industrial está praticamente parado porque não existe água". "A finalidade econômica não significa ausência de finalidade social", explica o ministro da Articulação Política, Aldo Rebelo, defensor do projeto. Para Rebelo, os antagonismos em torno da obra poderão ser resolvidos com compensações aos Estados. "Todos os Estados, de uma maneira ou de outra, acabarão sendo beneficiados pelo projeto". Uma das principais polêmicas da transposição é que, para expandir a fronteira agrícola do Ceará, Rio Grande do Norte e Paraíba, o projeto pode vir a prejudicar os pólos agrícolas atualmente instalados no Vale do rio São Francisco. José Gualberto, responsável pelos vinhos Botticelli e presidente da Valexport - entidade que congrega os produtores e exportadores do vale do São Francisco - diz que a instituição ainda não tem posição formal sobre o tema, mas dá pistas sobre a opinião predominante entre seus liderados: "Sai muito mais barato e eficaz implementar estes perímetros do que levar água para projetos no interior de outros Estados. Não existem recursos para a Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco (Codevasf), mas tem para a transposição. Até mesmo para o consumo humano exstem alternativas mais baratas como barragens subterrâneas, poços profundos e práticas de convivência com o semi-árido". No Estado em que está sediada grande parte dos produtores da Valexport, o governador Jarbas Vasconcelos posicionou-se pela primeira vez sobre o assunto na semana passada. Ele disse aceitar a transposição desde que haja compensações como a conclusão de obras ligadas aos recursos hídricos, como o Canal do Sertão e a Adutora do Oeste, além da revitalização do rio, defendida por todos os estados. O governador do Ceará, Lúcio Alcântara, acredita que Jarbas acabará apoiando o projeto. "Pernambuco será um grande beneficiado, já que terá o abastecimento de boa parte do Agreste e da Região Metropolitana garantido pela transposição". Adversários da transposição acusam ainda motivação eleitoral por trás do projeto. "O presidente Lula tem tomado medidas últimos tempos claramente populistas, com vistas à campanha eleitoral. Há sérios questionamentos sob os ângulos técnico e político. Nos parece que a pressa do governo talvez esteja ligada sim à eleição futura", avalia o senador de Minas, Eduardo Azeredo (PSDB). "No pressuposto de que uma obra pode trazer benefícios eleitorais, nós teríamos que paralisar o país, as prefeituras e os governos estaduais. Uma obra pode trazer benefício eleitoral quando é feita, e prejuízo quando não é", diz o ministro da Articulação Política, Aldo Rebelo. Os governadores contrários ao projeto perderam a principal batalha da transposição na discussão do Orçamento. "O momento era o do debate na Comissão Mista do Orçamento", admite o governador da Bahia, Paulo Souto. A Lei Orçamentária de 2005 foi a primeira a trazer recursos para a obra. Souto aponta a ausência de financiamento de organismos internacionais como um dos principais indicativos de que a obra é questionável, mas diz que restaram poucos recursos para contestá-la efetivamente. Alguns dos atos mais enérgicos contra a obra partem da Frente Nacional de Defesa do Rio São Francisco e Contra a Transposição. Além de políticos, participam da frente a Ordem dos Advogados do Brasil, os conselhos regionais de engenharia e arquitetura e movimentos da Igreja Católica. O secretário de Recursos Hídricos de Alagoas, Ronaldo Lopes, diz que o Estado não está fazendo pressão diretamente contra a obra, mas tem apoiado as ações da frente. "Tirar água do rio é como tirar sangue de um paciente terminal". Em Sergipe, o deputado estadual Augusto Bezerra (PFL) diz que a frente vai radicalizar se o governo der início às obras. Pretendem interditar a BR-101 por tempo indeterminado até que seus representantes sejam recebidos pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva.