Título: Brasil tem política ativa, mas sem foco
Autor: Romero , Cristiano
Fonte: Valor Econômico, 29/12/2008, Brasil, p. A4

Em seis anos de mandato, o governo Lula pôs em prática uma política externa de raro ativismo na história do país. O Brasil passou a negociar em praticamente todas as frentes internacionais, da América do Sul à Ásia, passando pela África e o Oriente Médio. Participou ativamente dos vários foros e criou, nas palavras de José Augusto Guilhon Albuquerque, professor do Núcleo de Pesquisa em Relações Internacionais (Nupri) da USP, um "palco internacional" para o presidente Luiz Inácio Lula da Silva. AP Photo/Joao Padua

Lula, Evo Morales e Hugo Chávez, em julho de 2008, na assinatura de acordos de infra-estrutura com apoio do Brasil

O ativismo teve um preço. Assim como é visto hoje como um país mais relevante no cenário mundial, o Brasil é também percebido como um colecionador de derrotas. Os aliados escolhidos pelo Itamaraty como preferenciais, tanto entre os vizinhos (Argentina e Venezuela, por exemplo) quanto entre os longínquos (China e Índia), são também os que mais impõem limites às ambições brasileiras.

Na avaliação de especialistas ouvidos pelo Valor, entre críticos e entusiastas, faltam à política externa resultados positivos. Para alguns, não há foco. Para outros, a diplomacia, mesmo meritória ao optar pelo ativismo, peca por adotar estratégias conceituais equivocadas. Uma pesquisa minuciosa feita recentemente pelo Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri), colhendo opiniões da chamada "comunidade brasileira de política externa", mostra que a avaliação da política externa piorou sensivelmente nos últimos anos.

Em 2001, 62% dos integrantes dessa comunidade, composta, entre outros, por autoridades, parlamentares, militares, pesquisadores e jornalistas, avaliavam a política externa como "ótima ou boa". Apenas 12% a consideravam "ruim ou péssima". Na pesquisa de 2008, o percentual de entusiastas caiu para 46%, e o de críticos subiu para 21%. A pesquisa, conduzida pelo cientista político Amaury de Souza, mostra que há, na maioria dos temas eleitos pela diplomacia, um descolamento entre as posições dos formadores de opinião e as do Itamaraty.

"Durante o primeiro mandato do presidente Lula, a política externa do governo abriu numerosas frentes de atuação, sem condições de dedicar a atenção necessária a todas elas, do que advieram negativas da parte dos formadores de opinião e mesmo de titulares de funções públicas. Embora sejam em geral positivas, as opiniões sobre a política externa do atual governo apresentam-se mais polarizadas que as registradas em 2001", pondera Souza.

AP Photo/Themba Hadebe

Singh, primeiro ministro da Índia, o então presidente da África do Sul, Thabo Mbeki e Lula: reunião do Ibas, em 2007 O ativismo pode não ser um mero capricho do Itamaraty. Três fatores teriam movido o governo Lula. O primeiro foi o fato de os Estados Unidos terem abandonado a América Latina. "A partir da Guerra do Iraque (2003), que acontece simultaneamente à ascensão de Lula, os EUA tiram a AL do radar e isso naturalmente aumenta o espaço de manobra do Brasil", diz o professor Matias Spektor, do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea (CPDOC) da Fundação Getúlio Vargas (FGV).

O segundo fator foi a "implosão" da Argentina em 2001, quando a economia do país vizinho entrou em colapso e rompeu com o sistema financeiro internacional. A terceira razão é que a conjuntura mundial, a partir da emergência econômica de nações como China, Rússia e Índia, permitiu que países periféricos, como o Brasil, subissem na hierarquia internacional. "O Brasil começou a assumir uma postura maior da que a que seu peso relativo em princípio sugeriria", explica o professor da FGV.

Internamente, a mola propulsora foi o próprio confronto de Lula com a realidade política do país. O presidente chegou ao poder embalado pela promessa de fazer um governo de esquerda. Instalado em Brasília, fez opções ditas "conservadoras" na política econômica e, para compensar esse fato e se reconciliar com os grupos que o apoiavam, estimulou o Itamaraty a inclinar-se para a esquerda. Foi uma alternativa política, diz Spektor, "de custo relativamente baixo". "Lula fez isso de forma magistral. Nesse sentido, ele é um estadista muito hábil", elogia.

Outro aspecto de natureza doméstica teria contribuído para dar impulso a uma política externa mais assertiva. No passado, os principais atores do Itamaraty alegavam que, sendo o Brasil um país que possui indicadores elevados de pobreza e desigualdade, não fazia sentido expandir as ambições na área externa. Esse argumento perdeu força. O Brasil de hoje não só é mais estável e rico que o de dez anos atrás, como também combina pela primeira vez, em sua história, crescimento econômico com redução das desigualdades.

Tudo isso criou as condições para que o Ministério das Relações Exteriores lançasse suas iniciativas. E elas não foram poucas. Em seis anos, para mencionar apenas as ações mais importantes, o Brasil se lançou de forma agressiva na disputa por um assento permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas; liderou a criação da União das Nações Sul-Americanas (Unasul); criou o G-20 comercial (para medir forças com os países ricos na Organização Mundial do Comércio); promoveu o diálogo Sul-Sul por meio de três grandes reuniões de cúpula (da América do Sul com os países africanos, árabes e da América Latina e Caribe); e forjou alianças com emergentes (a IBAS, que reúne Índia, Brasil e África do Sul, é um exemplo).

A primeira de todas as ambições - a integração sul-americana a partir de um Brasil "protagonista" - foi também a primeira a mostrar os limites reais do poder e da influência do país na região e no mundo. Baseado nas enormes assimetrias existentes entre o Brasil e seus vizinhos, o Itamaraty adotou o conceito de generosidade, imaginando que o continente, agora repleto de governos de esquerda como o de Lula, viria a reboque.

Quando Lula assumiu a presidência, Hugo Chávez comandava a Venezuela havia cinco anos e já tinha sofrido um golpe militar que lhe derrubou do cargo por 48 horas em 2002. Nos anos seguintes, com a explosão do preço do petróleo, ele traduziu a nova riqueza de seu país em uma política assertiva na América do Sul que, imediatamente, colidiu com as pretensões do Itamaraty. Diante, inclusive, das dificuldades formais do governo brasileiro em efetivamente ajudar seus vizinhos, Chávez se apresentou como alternativa a países como Bolívia, Paraguai e Argentina (do qual, inclusive, comprou títulos soberanos no momento em que o mercado mundial se fechou para esses papéis), nações que se vêem tradicionalmente dependentes do Brasil.

"Nesse período, a gente viu a Colômbia projetar força para fora de suas fronteiras, a implosão dos sistemas políticos boliviano e argentino, o descolamento do Chile do resto da América do Sul - de forma assertiva, o Chile não quer participar do projeto sul-americano -, além de problema atrás de problema com o Chávez", elenca Spektor. Todos esses acontecimentos estão fora do controle do Brasil, logo, são problemas que não podem ser atribuídos à política externa. Eles revelam, no entanto, os limites das intenções brasileiras. "Há limites muito estreitos para aquilo que é possível fazer na região", observa Spektor.

O problema maior está nas estratégias adotadas pela diplomacia. O mais dramático deles é a "parceria" com a Argentina. Durante a eleição do presidente Néstor Kirchner, Lula chegou a dizer que, se o ex-presidente Carlos Menem fosse eleito, quebraria uma perna para não ter que ir à posse. Eleito, Kirchner visitou Lula, que propôs a ele uma parceria. Sem entender o significado daquela palavra, inexistente no idioma espanhol, o líder argentino pediu socorro ao intérprete, que, não encontrando um sinônimo, lhe respondeu em inglês: "partner".

"Esse problema de tradução vai ao coração do problema estratégico do Brasil com a Argentina no governo Lula, que é a noção de que, para dar certo, o projeto brasileiro de integração regional requer uma parceria com a Argentina, mas, apesar disso, ser parceiro da Argentina é enormemente difícil. É difícil por causa da Argentina, mas é difícil também por causa do Brasil", explica o professor da FGV. "O fato de que temos ambições de união sul-americana, mas que não conseguimos traduzir isso numa parceria com o principal país da região, mostra o tipo de problema conceitual que há por trás de nossa política externa."

Os fracassos na região podem ser medidos pela paralisia do Mercosul e pelas inúmeras derrotas sofridas pelo Brasil nas disputas pelo comando de instituições multilaterais. Foi assim, por exemplo, na OMC, no Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e na Organização Mundial de Propriedade Intelectual. Em todos esses casos, os países vizinhos manobraram contra o pleito brasileiro. Kirchner chegou a fazer ironia, dizendo que Lula queria escolher até o Papa - uma referência à predileção do líder brasileiro, no conclave que escolheu Bento XVI, por Dom Cláudio Hummes.

As opiniões sobre esses episódios são cáusticas. "Conseguimos transformar uma admiração distante num ódio próximo", sintetiza o ex-deputado Paulo Delgado, do PT. "O protagonismo brasileiro é encarado com inveja pelos vizinhos. Estamos isolados na América do Sul", define Guilhon Albuquerque. "A idéia de união sul-americana é positiva, mas, em vez de assistirmos a uma integração, estamos vendo uma fragmentação", critica o embaixador Sérgio Amaral.

"O balanço do Mercosul é muito negativo, o relançamento nunca se concretizou e o organismo é percebido hoje em dia mais como uma plataforma de lançamento de propostas políticas do que um claro mecanismo de integração regional", acrescenta o professor Rafael Duarte Villa, também do NUPRI.

A opção pela aliança com países emergentes também revelou surpresas desagradáveis. O G-20 pareceu engenhosa no início. Com o tempo, mostrou-se uma armadilha para o Brasil, que, nas últimas negociações da Rodada Doha, da OMC, percebendo o impasse, bandeou para o lado dos EUA, criando ressentimentos entre os aliados emergentes. "O G-20, no fundo, foi um erro. Tanto que na última reunião, Celso Amorim foi obrigado a se afastar da Índia e da China porque os interesses não eram os mesmos. Na agricultura, principal assunto para o Brasil nas negociações, são opostos", diz o ex-ministro Luiz Felipe Lampreia.

Os interesses cruzados estão presentes também nas negociações políticas. A campanha por uma vaga permanente no Conselho de Segurança, a maior operação diplomática da história do país, segundo o embaixador Sérgio Amaral, esbarra nos interesses dos novos aliados. "Aqueles que considerávamos nossos aliados estratégicos foram justamente os que bloquearam o êxito da nossa campanha - a China e os países africanos. Sem falar na Venezuela, que até o último momento parecia estar contra", lembra ele.