Título: Abertura do mercado de gás natural em São Paulo
Autor: Pires , Adriano
Fonte: Valor Econômico, 29/12/2008, Opinião, p. A10
A política de abertura de mercado é sempre bem-vinda, pois promove a concorrência, incentiva novos investimentos e protege o consumidor. Entretanto, existem setores na economia, em particular, aqueles onde existem as chamadas indústrias de rede que exigem pré-condições, bastante particulares, para que se promova a abertura de mercado. Entenda-se, desde logo, pela expressão "indústrias de rede", o conjunto das indústrias dependentes da implantação de malhas (ou redes, ou ainda "grids") para o transporte e distribuição ao consumidor dos seus respectivos produtos. Em países onde a infra-estrutura é ainda incipiente, a questão da abertura das indústrias de rede à concorrência perde muito em relevância, ao menos no curto e no médio prazo. Isto porque, nestes contextos, a discussão prioritária se concentra na criação das pré-condições necessárias à montagem das próprias redes, onde o fator preponderante passa a ser a mitigação dos riscos envolvidos na montagem dos novos projetos. Esse é o caso da distribuição de gás natural nos estados brasileiros, em particular, no de São Paulo onde está sendo atualmente discutida a abertura do mercado da Comgás.
A atual estrutura da indústria de gás natural brasileira é atípica, não podendo ser comparada facilmente com a de outros países. Apesar da abertura setorial realizada em 1997, a Petrobras continua sendo uma empresa monopolista de fato na produção e comercialização de gás. A estatal é dominante no transporte e possui participação em 20 das 26 concessionárias estaduais de distribuição de gás existentes no país, além de ter uma posição importante na geração termelétrica e na petroquímica. A Petrobras detém, ainda, domínio do refino e importação dos derivados de petróleo que competem com o gás natural. Essa situação hegemônica da Petrobras tem poucos paralelos internacionais. Mesmo em países como a França, Reino Unido e Argentina, que no passado tinham monopólios estatais que regiam a indústria do gás natural, o poder de mercado do agente estatal não se estendia por tantos segmentos como no caso da Petrobras.
No Brasil, a Lei 9.478/97 criou as bases para a abertura ao investimento privado dos segmentos de exploração, produção, processamento, transporte, importação e exportação de gás natural. Essa regulamentação adotou critérios que visavam introduzir concorrência no mercado de gás natural. A entrada de novos agentes nas atividades de exploração e de produção foi viabilizada mediante contratos de concessão, firmados após licitações promovidas pela ANP. No segmento de transporte ficou estabelecido a existência de acesso aos dutos por terceiros interessados mediante remuneração e negociação com os proprietários das instalações.
O tema do acesso às instalações de transporte foi regulamentado pela primeira vez em 1998, através da Portaria 169/98 da ANP. Nas duas ocasiões em que o acesso foi efetivamente requisitado, o pedido resultou em conflito entre as partes e acabou levando à intervenção da ANP. Após um longo e custoso processo de arbitragem, a decisão da agência foi favorável às empresas que requisitaram o acesso. Verificou-se, entretanto, que a portaria não era adequada para solucionar, de forma ágil e previsível, as pendências entre os agentes. Sem normas eficazes que garantam o acesso de terceiros as redes de gasodutos de transporte, desencoraja-se novos investimentos privados na exploração e produção de gás no país, o que inibe o avanço da produção doméstica. É importante chamar à atenção que desde 2003, quando se iniciou o primeiro mandato do presidente Lula, ocorre um esvaziamento da Agência Reguladora do Petróleo (ANP) e um maior fortalecimento da Petrobras. Isso conduz a perpetuação definitiva do monopólio da Petrobras na produção e comercialização do gás natural e coloca a expansão do energético na matriz energética totalmente dependente das decisões corporativas da estatal.
Esse diagnóstico é que motivou a criação de uma lei específica para o gás natural. Essa lei se encontra em discussão há quase quatro anos no Congresso Nacional e existe uma grande chance de ser aprovada em 2009. Não há dúvida que a aprovação desta lei significará um avanço no setor de gás natural, dado que dará maior segurança legal e regulatória, incentivando assim a entrada de novos players na produção e transporte de gás no Brasil. Entretanto, como o texto da lei prevê fases de transição, as transformações a serem promovidas pela nova legislação nas atuais características do mercado de gás demorarão de cinco a dez anos para surtir os efeitos desejados.
A situação atual de escassez de oferta, de monopólio na produção, na importação e no transporte e a demora que ocorrerá para que nova Lei corrija as atuais distorções do mercado de gás natural acabam inviabilizando a abertura do mercado de gás natural nos estados, sem que haja uma fase de transição. Para que os potenciais clientes livres encontrem fornecedores, é imprescindível que existam condições de concorrência adequadas nos níveis superiores da cadeia (produção), com distintos produtores e/ou importadores, oferta abundante e livre acesso ao transporte, possibilidade de armazenamento, e/ou sistemas para a recepção e distribuição de Gás Natural Liquefeito (GNL).
Toda a indústria deve estar acompanhada de um marco regulatório adequado, com possibilidade de livre acesso à infra-estrutura de transporte, com um sistema de regulação independente, modicidade de tarifas e transparência na sua definição, bem como garantias de remuneração aos operadores dos aparatos de infra-estrutura. Os diversos matizes que comportam a questão da abertura das indústrias de rede à concorrência demonstram a sua complexidade, pois, além de envolver claros compromissos ideológicos (o papel do Estado como regulador e/ou planejador), impacta decisivamente o status quo dos negócios já estabelecidos, além de determinar a direção e o perfil dos novos projetos.