Título: São Bernardo foge do destino de Detroit
Autor: Totti, Paulo
Fonte: Valor Econômico, 29/12/2008, Especial, p. A12

Nos Estados Unidos há em média um automóvel para cada habitante. No Brasil, a relação é de um para oito. É nisso que Sérgio Nobre, presidente do sindicato dos metalúrgicos do ABC (com base operacional em São Bernardo, Diadema, Rio Grande da Serra e Ribeirão Pires, região metropolitana de São Paulo), sustenta sua certeza de que a crise mundial tem impactos diferentes na indústria automotiva dos Estados Unidos e do Brasil. " Lá", diz ele, referindo-se a Detroit, "é mais demorado recuperar-se de uma crise grave". E oferece sua análise da situação: "Os carros americanos consomem muito combustível, há modelos esportivos que são quase tão grandes como caminhões e o movimento de vendas depende principalmente da troca do automóvel. Se o consumidor decide ficar mais um ano com o mesmo carro, a crise se instala e a indústria acrescenta esse problema conjuntural à crônica situação do financiamento dos fundos de aposentadoria. Os carros produzidos no Brasil, especialmente em São Bernardo, são populares, bebem menos e são flex. Nosso mercado tem grande potencial de crescimento. Se melhora a renda e o crédito se amplia, as vendas explodem. Foi o que ocorreu aqui nestes últimos anos". Anna Carolina Negri/Valor

Luiz Marinho, prefeito eleito de São Bernardo: "Cidade sofrerá, mas não acho que a crise me impeça de governá-la com eficiência; o mercado interno está robusto."

Da sala da presidência do sindicato, pode-se ver, a meio quilômetro de distância, um pedaço das instalações da Volkswagen em São Bernardo, cercadas pelas muitas árvores que não só protegem os prédios como encobrem os muitos pátios onde a maior montadora da América Latina estoca os automóveis que não conseguiu vender nos últimos dois meses. Os números da frustração de vendas são um segredo - cerca de 300 mil, segundo o "Estado de S. Paulo" - mas do alto percebe-se que o encalhe lota os canteiros, invade os caminhos asfaltados e serpenteia colinas acima, perdendo-se num bosque.

Atrás das árvores, reina o silêncio, desde o dia 22. Os onze mil diaristas e mensalistas da matriz da Volkswagen no Brasil, com capacidade para a produção de 1,6 mil veículos por dia - Gol, o mais vendido, é o seu carro chefe, mas ali são montados também o Polo, o Saveiro, a Kombi - estão em férias coletivas até a quarta-feira, dia 7. O mesmo acontece com as unidades de São Carlos (motores) e de Taubaté (Gol, Parati), em São Paulo; de São José dos Pinhais (Golf, Fox, Cross Fox), no Paraná, e de Resende (caminhões e ônibus), no Estado do Rio. As concorrentes GM, Ford, Fiat, Toyota, Peugeot-Citroën, Renault, Mercedes Benz, Scania, Volvo, Honda, também colocaram seus trabalhadores em férias.

A Volkswagen não reconhece que as férias se devem à queda das vendas. "Como acontece com um carro de Formula 1, há necessidade de parar para abastecer. É o que faremos nesta época do ano, para depois voltar à corrida", disse o presidente da Volkswagen, Thomas Schmall, antes de viajar para a Alemanha onde passa as Festas e se informa sobre os planos mundiais da montadora. Antes de viajar, Schmall reafirmou que mantém, sem mudanças ou interrupção, a decisão da empresa de investir R$ 3,2 bilhôes no Brasil até 2012.

A paralisação do trabalho na Volkswagen deixou tranqüilas as ruas do bairro Demarchi, onde está a fábrica - não há filas de caminhões-cegonheiros a tumultuar o trânsito. E os carros Gol dos trabalhadores foram para as praias próximas ou estão circulando pelos bairros onde moram em São Bernardo, em São Caetano ou na zona Leste de São Paulo. Alguns aproveitavam a pausa no trabalho da véspera de Natal para fazer compras no centro da cidade, onde a rua Marechal Deodoro já exibia lojas superlotadas às nove da manhã de segunda-feira, o primeiro dia das férias coletivas.

Esse descanso não chega a ser de total relaxamento, pois, como disse ao Valor o ferramenteiro Ivan, "ninguém sabe ao certo o que virá depois desta folga". Mas o ferramenteiro não parecia tão preocupado com o próximo dia 8. Com a mulher e a filha Clarisse, 13 anos, Ivan estava na fila do crediário do Magazine Luiza, onde acabara de comprar uma TV LCD de 42 polegadas, para pagar em 12 parcelas, com 30% de entrada. "Sem entrada e a perder de vista, comprei o computador e um Ipod pra menina", diz Ivan. Os fones do Ipod já estão nos ouvidos de Clarisse.

O sindicato também está parado, com as atividades suspensas até 12 de janeiro. Até a padaria Assembléia II, ao lado do sindicato, está pouco freqüentada na hora do café da manhã. No sindicato, a exceção são os plantões para atender emergências assistenciais ou burocráticas - havia receio de demissões, mas elas se revelaram poucas na semana do Natal e não ocorreram nas montadoras. Os diretores do sindicato, porém, têm um compromisso importante às 10 horas de quinta-feira, 1º de janeiro: o comparecimento, solene e incorporado, de todos eles ao Paço Municipal, para a posse de Luiz Marinho na prefeitura.

Candidato do PT, Luiz Marinho, 49 anos, casado, dois filhos, formado em direito, se elegeu prefeito de Sâo Bernardo no segundo turno, com 237.617 votos (58,19%), contra 170.728 de Orlando Morando (PSDB). Esta eleição não representa apenas o retorno do PT ao governo de uma cidade hoje com 805 mil habitantes. A última eleição de um petista em São Bernardo foi há exatos 20 anos, com Maurício Soares. Este veio a ser prefeito novamemte em 1996 e em 2000, mas se elegeu pelo PSDB e se reelegeu pelo PPS (em 2008 voltou às boas com o PT e coordenou a campanha de Marinho). Em 1992, o eleito foi Walter Demarchi, do PTB, e o prefeito que encerra seu mandato, William Dib, usou a legenda do PSB para eleger-se, embora tenha com os deputados federais Ciro Gomes e Luiza Erundina menos afinidades políticas do que com o governador José Serra (PSDB).

Além do retorno do PT à prefeitura, a eleição de Marinho é importante porque se trata de um líder metalúrgico duas vezes presidente do mais poderoso sindicato do país (1996-1999 e 1999-2002), ex-presidente da Central Única dos Trabalhadores (CUT), ex-ministro do Trabalho e ex-ministro da Previdência. Operário da Volkswagen desde 1978 (seu único registro na carteira profissional), onde trabalhava na seção de pintura, Marinho era presidente do sindicato quando negociou em Wolfsburg, sede mundial da empresa na Alemanha, o recuo de uma decisão já tomada de demissão em massa de trabalhadores em São Bernardo. Na época, 1998, a Volkswagen pretendia demitir seis mil trabalhadores em São Bernardo e, segundo Sérgio Nobre, então ajustador mecânico e membro da comissão de fábrica da Mercedes Benz; a "imprensa especializada" dizia que a Volkswagen se cansara da "implicância" do sindicato, decidira sair de São Bernardo e pensava mesmo em abandonar o Brasil. "Não houve nada disso", diz Nobre. "Não ocorreram as demissões anunciadas e a Volkswagen aumentou os investimentos em São Bernardo, onde, agora, se desenvolvem, se criam carros, com engenheiros e designers brasileiros". Calmo, esse estudante do quarto e último ano do curso de relações internacionais numa faculdade privada de Santo André, 43 anos, entusiasma-se: " Atenção para a diferença. Em São Bernardo se produz automóvel. Em outros locais, monta-se automóvel". A Volkswagen, aliás, coincide em entusiasmo com o presidente do sindicato ao afirmar em press-release que o Fox é "um carro brasileiro de nascimento",

Nobre diz que a globalização é que o fez decidir-se pelo bacharelado em relações internacionais. "Preciso conhecer política internacional e economia global para discutir com patrões multinacionais", diz. Dos oito membros da diretoria do sindicato eleita em agosto último, quatro têm curso superior. O prefeito Marinho levará um deles, Tarcísio Secoli, operário da Mercedes, para ser seu secretário de Governo.

Outras importantes negociações do presidente do sindicato Luiz Marinho foram com a Ford, em Detroit (Michigan, EUA) que resultaram na desistência de demissões e na transferência da Ford do bairro do Ipiranga em São Paulo para o bairro do Taboão, na entrada de São Bernardo. A Brastemp, porém, depois de ter comprado a Consul, e ser comprada pela norte-americana Whirlpool, mudou-se de São Bernardo para Joinville (SC), Rio Claro (SP) e Manaus. Marinho acabara de assumir a presidência do sindicato e, segundo ele, não houve tempo para renegociar uma mudança de planos. Marinho tem a seu crédito, entretanto, o adiamento das demissões e a recolocação dos milhares de dispensados. Hoje, a duas quadras do sindicato, um hipermercado do Wal-Mart ocupa as instalações da antiga Brastemp. Nas negociações, o presidente do sindicato não foi intransigente e chegou a fazer algumas concessões que certamente serão lembradas pelos patrões na atualidade. Com o apoio de uma multidão em assembléia, Marinho concordou por exemplo, com a redução temporária da carga de trabalho e o correspondente corte de 15% nos salários da Volkswagen, em troca de garantia de emprego. Na época, 1998, a VW registrava queda de 21% em suas vendas. Como agora, a crise não era originária do Brasil, pois no ano anterior, a Volkswagen vendera mais de 1,7 milhão de veículos, seu recorde até então.

Marinho não pensava em crise quando se candidatou e se elegeu prefeito de São Bernardo, depois de um disputado primeiro turno em que conseguiu 48,27% dos votos. A crise parecia apenas financeira e atingia o mercado de hipotecas para casa própria nos Estados Unidos. Depois é que ela se revelou mundial e quase terminal para a indústria de automóveis nos EUA. Neste quadro é que Marinho, um líder metalúrgico, se vê prefeito de um município que, desde 1950, hospeda as mais importantes empresas automobilísticas do Brasil. Num universo em que se destacariam Ford, Scania, Toyota, MercedesBenz, e uma centena de fabricantes de autopeças, a Volkswagen instalou em São Bernardo a sua primeira fábrica fora da Alemanha e desde então não deixou de liderar. Em 55 anos, produziu em São Bernardo e vendeu no mercado interno 15 milhões de veículos e exportou outros 2,3 milhões para 50 países. Hoje, o Brasil é o segundo mercado para a Volkswagen no mundo, maior do que a própria Alemanha. Com um crescimento de mais de 20% sobre a performance do ano anterior, em agosto último acumuladas no ano, as vendas da Volks no Brasil superaram as da Alemanha (314 mil carros contra 312 mil). A liderança agora é da China, com um pouco mais de 500 mil carros vendidos em agosto. Daí para frente houve queda generalizada, mas as posições no ranking se mantêm. A Volks fecha o ano com vendas de 576 mil carros leves e de passeio no Brasil. A liderança, porém, ainda é da Fiat , com 649.382.

A Volkswagen é a maior empresa instalada em São Bernardo - a décima terceira do Brasil, segundo a revista Valor - Grandes Grupos - e os impostos que paga, diretamente ou por repasses de tributos federais e estaduais, têm o maior peso específico nos R$ 2,2 bilhões que a prefeitura arrecada anualmente. A esses impostos somem-se os que decorrem da movimentação dos salários de seus empregados e do restante dos empregados da cadeia automotiva e metalmecânica do município. Dos 105 mil empregados na indústria metalúrgica da base operacional do sindicato, 82 mil são filiados ao sindicato e 75 mil moram em São Bernardo. Seu salário nas montadoras é em média de R$ 3 mil. Na indústria de autopeças, um pouco menos: em torno de R$ 2,3 mil. Só em participação nos lucros e resultados, em 2007, os metalúrgicos de São Bernardo receberam R$ 300 milhões.

Em 2002, o Dieese fez para o sindicato de São Bernardo uma pesquisa em que calculou o tempo de trabalho necessário para um metalúrgico horista adquirir o carro que ele próprio montava. Em São Bernardo, um trabalhador da Volkswagen precisava de 1.302 horas para comprar, à vista, um Gol Special 1.0. Em Camaçari (BA), um operário da Ford trabalharia 4.423 horas para comprar um Fiesta Street 1.0. Não há nova pesquisa com o mesmo objetivo, mas a percepção é que o quadro apurado não mudou radicalmente. E essa constatação reflete a importância que a indústria automotiva tem para São Bernardo do Campo. Para o bem e para o mal.

Era uma indústria obsoleta e empregava cerca de 170 mil pessoas na região de São Bernardo quando começou o governo de Fernando Collor de Mello (1990-1992). A partir daí, modernizou-se, superou crises - de uma delas, no governo Itamar Franco (1992-1995), tentou salvar-se com o fracassado relançamento do fusquinha - reestruturou-se e, ao final do governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2003), empregava apenas 79 mil pessoas; Houve queda no emprego em 2003 - não na produção, que a partir daí começou a crescer. Em 2004, ambos cresceram harmonicamente. A produção foi de 1,830 milhão de veículos em 2003 (só superada em 1997. com 2,050 milhões) para em torno de 3,200 milhões esperada para estes últimos dias do 2008, aí incluídos caminhões e ônibus O emprego, nestes seis anos de governo Lula, subiu 37,8% nas montadoras de todo o país - 4,5% em São Bernardo. (No setor metalúrgico em geral, o emprego no Brasil ascendeu de 1,418 milhão em 2002 para 2,130 milhões até outubro de 2008).

O dirigente sindical Luiz Marinho diz-se consciente de que as conquistas dos metalúrgicos de São Bernardo não podem ser dissipadas no governo do prefeito Luiz Marinho. Crise na indústria significa desemprego e carência de recursos para o cumprimento dos compromissos que Marinho assumiu ao eleger-se, e que são os compromissos-padrão de toda administração petista: melhora da educação (prioridade: creches), da saúde (um hospital geral para São Bernardo), transporte (bilhete único, integração com o ABC e com São Paulo) e criação de um consórcio intermunicipal no ABC para incineração do lixo. A posse de Marinho não significa, segundo Sérgio Nobre, que os metalúrgicos tomarão o poder no município. Mas vão colaborar com propostas, discussões e também fiscalização. Segundo Nobre, o sindicalismo do ABC viveu, nas últimas quatro décadas três fases marcantes: a primeira, na ditadura, a luta pela liberdade sindical e pela democracia (Lula presidia o sindicato); a segunda, a defesa do emprego e do salário (presidência de Vicente Paulo da Silva, o Vicentinho, e de Marinho). E agora, já com Lula presidente, o sindicato não se descuidou da fábrica, mas "sai para a rua, se junta à sociedade, a passa a exigir para o trabalhador saneamento, educação, participação no progresso".

Hábil negociador, Marinho considera viável um entendimento com os demais prefeitos do ABC (em sete, só mais dois, Diadema e Mauá, são do PT) e também com o governador José Serra. Depois que anunciou que não será candidato a governador em 2010, Marinho se sente à vontade para dialogar. "Assim como escolhi um secretário de Habitação que saiba o caminho do Caixa Econômica e do Ministério das Cidades, não terei problema de andar vinte quilômetros e ir ao Palácio do Morumbi conversar com o governador. Detroit e Wolfburg ficam mais longe".

"E a crise?

"Levo a situação a sério. Sei que, se ela acontecer como alguns prevêem e até torcem por isso, São Bernardo sofrerá um impacto maior do que o resto do país. Mas, não exagero seus efeitos. Não acho que a crise inviabilize a cidade e me impeça de governá-la com eficiência. No plano nacional, o governo Lula tomou decisões corretas e no tempo certo para controlar a situação. O mercado interno está robusto. Acho mesmo que o país continuará crescendo, talvez com alguma desaceleração, mas a indústria brasileira poderá sair dela até mais forte do que agora. Na verdade, só o que joga contra o Brasil no momento é o juro alto".