Título: Novos paradigmas da responsabilidade civil
Autor: Venosa , Sílvio de Salvo
Fonte: Valor Econômico, 29/12/2008, Legislação & Tributos, p. E2

Há dois campos no direito civil que sofrem transformações mais acentuadas no fim do século XX e início deste século: o da responsabilidade civil e o da família. O direito de família transformou-se principalmente entre nós após a Constituição Federal de 1988, não tendo o Código Civil de 2002 dado uma resposta à altura dos anseios sociais. A doutrina e a jurisprudência vêm suprindo as omissões legislativas com o maior empenho.

Por outro lado, na responsabilidade civil o mais recente diploma civil introduziu disposições que alteram paradigmas do passado na esfera do estatuto de 1916, como quase dogmas. Assim, podem ser apontados com maior ênfase os textos dos artigos 927 e seu parágrafo único, 928, 931, 936, 944 e seu parágrafo único e 945. Aqui tecemos algumas considerações sobre o parágrafo do artigo 927.

Ao se analisar a teoria do risco - mais exatamente o chamado risco criado - nessa fase de responsabilidade civil de pós-modernidade, o que se leva em conta é a potencialidade de ocasionar danos, a atividade ou conduta do agente que resulta, por si só, na exposição a um perigo, noção introduzida pelo artigo 2.050 do Código Civil italiano de 1942. Leva-se em conta o perigo da atividade do causador do dano por sua natureza e pela natureza dos meios adotados. Muitos dos novos princípios contratuais e de responsabilidade inseridos no Código Civil de 2002 já figuravam como princípios expressos ou implícitos no Código de Defesa do Consumidor.

A teoria da responsabilidade objetiva bem demonstra o avanço da responsabilidade civil nos séculos XIX e XX. Foram repensados e reestruturados muitos dogmas a partir da noção de que só havia responsabilidade com culpa. O âmbito da responsabilidade sem culpa aumenta significativamente em vários segmentos dos fatos sociais. Tanto assim é que culmina com a amplitude permitida pelo parágrafo único do artigo 927 do Código Civil: "Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem".

Na responsabilidade objetiva, há, em princípio, uma pulverização do dever de indenizar por um número amplo de pessoas. Contudo, o princípio gravitador da responsabilidade extracontratual no Código Civil ainda é o da responsabilidade subjetiva, ou seja, da responsabilidade com culpa, pois essa também é a regra geral traduzida na legislação em vigor, no caput do artigo 927 do código. Em situações excepcionais o juiz poderá concluir pela responsabilidade objetiva no caso que examina. No entanto, advirta-se, o dispositivo questionado explicita que somente pode ser definida como objetiva a responsabilidade do causador do dano quando este decorrer de "atividade normalmente desenvolvida" por ele. O juiz deve avaliar, no caso concreto, a atividade costumeira do ofensor e não uma atividade esporádica ou eventual, qual seja, aquela que, por um momento ou por uma circunstância, possa ser um ato de risco. Não sendo levado em conta esse aspecto, poder-se-á transformar em regra o que o legislador colocou como exceção.

A noção clássica de culpa foi sofrendo, no curso da História, constantes temperamentos em sua aplicação. Nesse sentido, as primeiras atenuações em relação ao sentido clássico de culpa traduziram-se nas "presunções de culpa" e em mitigações no rigor da apreciação da culpa em si. Os tribunais foram percebendo que a noção estrita de culpa, se aplicada rigorosamente, deixaria inúmeras situações de prejuízo sem ressarcimento. Não se confunde a presunção de culpa, onde culpa deve existir apenas se invertendo os ônus da prova, com a responsabilidade sem culpa ou objetiva, na qual se dispensa a culpa para o dever de indenizar. De qualquer forma, as presunções de culpa foram um importante degrau para se chegar à responsabilidade objetiva.

A teoria do risco aparece na história do direito, portanto, com base no exercício de uma atividade, dentro da idéia de que quem exerce determinada atividade e tira proveito direto ou indireto dela responde pelos danos que ela causar, independentemente de culpa sua ou de prepostos. O princípio da responsabilidade sem culpa ancora-se em um princípio de eqüidade: quem aufere os cômodos de uma situação deve também suportar os incômodos. O exercício de uma atividade que possa representar um risco obriga por si só a indenizar os danos causados por ela. No direito mais recente, a teoria da responsabilidade objetiva é justificada tanto sob o prisma do risco como sob o prisma do dano. Não se indenizará unicamente porque há um risco, mas porque há um dano e, nesse último aspecto, em muitas ocasiões dispensa-se o exame do risco.

A insuficiência da fundamentação da teoria da culpabilidade levou à criação da teoria do risco, a qual sustenta que o sujeito é responsável por riscos ou perigos que sua atuação promove, ainda que coloque toda diligência para evitar o dano. Trata-se da denominada teoria do risco criado ou do risco benefício. O sujeito obtém vantagens ou benefícios, e em razão dessa atividade deve indenizar os danos que ocasiona. Cuida-se da responsabilidade sem culpa em inúmeras situações nas quais sua comprovação inviabilizaria a indenização para parte presumivelmente mais vulnerável. A legislação dos acidentes do trabalho é um exemplo emblemático desse aspecto.

A inovação presente no parágrafo sob exame requer extrema cautela na sua aplicação. Por esse dispositivo, a responsabilidade objetiva aplica-se, além dos casos descritos em lei, também "quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem". Por esse dispositivo, o julgador poderá definir como objetiva a responsabilidade do causador do dano no caso concreto. Esse alargamento da noção de responsabilidade constitui realmente a maior inovação do novo Código Civil em matéria de responsabilidade e requererá, sem dúvida, um cuidado extremo dos tribunais. É discutível a conveniência de uma norma genérica nesse sentido. Melhor seria que se mantivesse nas rédeas do legislador a definição da teoria do risco. As dificuldades começam pela compreensão da atividade de risco. Em princípio, toda atividade gera um risco. É fato, por outro lado, que o risco por si só não gera o dever de indenizar se não houver dano. Por outro lado, se dano houver, deve ser certo e avaliável.

De qualquer modo, alargar o campo da responsabilidade objetiva com uma norma aberta, sem um critério concreto, causa extrema instabilidade e pode ser colocada a serviços de espíritos insinceros, aventureiros ou toscos. Com isso há fundado receio de que os tribunais realcem o elemento dano, preterindo a constatação de culpa de forma geral, deixando uma das partes simplesmente sem defesa.

A jurisprudência ainda é inicial nos primeiros anos de vigência do Código Civil de 2002. Ainda levaremos algum tempo para maior amadurecimento e estabilidade dos julgados.

Sílvio de Salvo Venosa é autor de várias obras de direito civil, consultor e parecerista nessa área

Este artigo reflete as opiniões do autor, e não do jornal Valor Econômico. O jornal não se responsabiliza e nem pode ser responsabilizado pelas informações acima ou por prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso dessas informações