Título: Licença ambiental: uma proposta
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 30/12/2008, Brasil, p. A2

O Brasil ainda utiliza pouco do seu potencial hidráulico na produção de energia elétrica - menos de 30%, face a 70% nos Estados Unidos e a quase 100% na França. Essa energia é renovável, contribui de forma insignificante para o efeito estufa e, em geral, custa menos do que a energia gerada por usinas nucleares e térmicas (estas, bastante poluentes porque produzem a partir da queima de combustíveis fósseis).

A energia hidráulica, segundo dados oficiais, responde por 77% da matriz energética brasileira. Em 2007, a sua oferta no mercado interno cresceu 6,5%, ritmo inferior ao de expansão de fontes não-renováveis de energia, como os derivados de petróleo (7,9%) e o carvão e derivados (10,4%).

Mesmo com o enorme potencial hidráulico a explorar, o Brasil viveu a tragédia do racionamento de energia em 2001. De lá para cá, uma nova lei para o setor foi aprovada, a produção de energia hidrelétrica voltou a crescer, mas há problemas. Um deles está no licenciamento ambiental. A situação melhorou em relação às regras anteriores, mas ainda está longe de dar agilidade ao desenvolvimento de novos projetos de geração.

Antes da Lei 10.848, a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) licitava concessões de potenciais hidráulicos, mas não exigia que os projetos fossem dotados das correspondentes licenças ambientais. Com isso, os órgãos ambientais submetiam os ganhadores das licitações a rito idêntico ao aplicado a empreendimentos do setor privado. No fim, as licenças não eram emitidas porque ou o empreendedor não conseguia satisfazer as exigências ou porque perdiam o interesse no investimento.

"As entidades de licenciamento ambiental e os investidores se comportavam como se o que estivesse em jogo fosse apenas o lucro do empreendedor. Desprezava-se o fato de que, sem a materialização das usinas, a população viria a sofrer racionamento de energia, com todas as conseqüências nefastas sobre a oferta de emprego e crescimento do PIB, como ficou evidenciado pelo deflagrar da crise", diz Jerson Kelman, diretor-geral da Aneel. "Em outras palavras, desprezava-se o interesse público."

Depois da Lei 10.848, apenas o potencial hidráulico previamente dotado de licença ambiental passou a ser licitado. Agora, cabe ao governo federal escolher, a partir de potenciais hidráulicos conhecidos, uma seleção de locais para a instalação de usinas hidrelétricas com capacidade para atender a demanda energética projetada. A solução foi boa, mas a legislação ambiental e normas aprovadas pelo Conselho Nacional do Meio Ambiente, observa o diretor da Aneel, têm tido o "indesejável efeito" de fazer com que cada potencial hidráulico seja examinado separadamente, sem visão de conjunto, "com prevalência do interesse local sobre o nacional".

Cite-se apenas um exemplo: o projeto de construção das usinas do rio Madeira. Idealizado em 2002, o projeto só começa a sair do papel agora, seis anos depois, ainda assim, parcialmente, uma vez que, das duas usinas, apenas uma (Santo Antônio) está sendo efetivamente construída. Foi pensando nisso e em todas as dificuldades interpostas à utilização do potencial hidráulico do país que Kelman propôs aperfeiçoamentos na lei.

O diretor-geral da Aneel, que deixará o cargo no próximo dia 13 depois de cumprir mandato de quatro anos, defendeu suas idéias durante audiência na Comissão de Minas e Energia da Câmara. A pedido dos deputados, colocou a proposta no papel e a encaminhou àquela comissão. A "ousadia" lhe custou uma inacreditável ameaça de processo penal, por parte de procuradores federais, que o acusaram de fazer "apologia ao crime".

O "crime" de Kelman foi propor que passasse a ser atribuição do presidente da República, a partir de proposta elaborada pelo Conselho de Defesa Nacional (cuja criação está prevista na Constituição federal), selecionar um leque de obras que produza energia suficiente para o crescimento da economia e a ampliação da oferta de empregos, com impacto sócio-ambiental mínimo. "O que é bem diferente de impacto nulo", adverte ele.

A proposta determina que os ministérios das Minas e Energia, do Meio Ambiente e do Planejamento submetam, anualmente, pelo menos três seleções de potenciais hidráulicos, com base na demanda projetada de energia para os próximos dez anos. O Ibama passaria a ser o responsável pelos estudos de impacto ambiental das obras. A análise dos impactos sociais, bem como uma solução para eles, seria feita pelo Planejamento.

O Conselho de Defesa proporia as opções de potenciais hidráulicos a serem explorados, já levando em conta os aspectos econômicos, ambientais e sociais analisados. Com base nas informações prestadas, o presidente decidiria que potenciais hidráulicos seriam utilizados. Os procuradores que ameaçaram Kelman entenderam que ele estava propondo o fim do licenciamento ambiental, o que não é verdade.

A proposta de Kelman, que está sendo devidamente analisada pelo ministro das Minas e Energia, Edison Lobão, faria com que as decisões sobre a construção de novas usinas hidrelétricas passassem a ser tomadas, de forma transparente, pelo alto escalão da administração pública. No modelo atual, a decisão definitiva, na prática, é dos técnicos, que muitas vezes, ou por temerem processos judiciais ou por agirem com motivação político-ideológica, bloqueiam as obras.

"O presidente disporá de instrumentos para promover o desenvolvimento sustentável, evitando que projetos que tragam benefícios para a maioria da população possam ser bloqueados pela ação de minorias", justifica Kelman, que deixa seu projeto como uma relevante contribuição ao debate. "Os servidores públicos de entidades de licenciamento ambiental, que atuem de boa-fé e com boa técnica, não terão o temor de serem punidos por suas decisões. E o Poder Judiciário terá a certeza de que cabe ao governo federal a responsabilidade de licenciar empreendimentos de interesse público, cujos benefícios ultrapassem as fronteiras estaduais, como é o caso de usinas hidrelétricas conectadas ao Sistema Interligado Nacional."