Título: O trabalho em saúde e o impacto no mundo globalizado
Autor: Eduardo de Campos , Francisco
Fonte: Valor Econômico, 30/12/2008, Opinião, p. A10

A saúde como um problema global veio à tona e passou a merecer a atenção do mundo a partir da descoberta de ameaças epidemiológicas, como o vírus Ebola, a epidemia de Sars e a gripe aviária. Até aquele momento, era razoavelmente despercebida a descomunal iniqüidade no campo da saúde entre os países do mundo. Os gastos médios com saúde variam de US$ 10 mil por habitante/ano nos EUA até menos de US$ 50 em muitas nações africanas. Etiópia, Niger e Burundi gastam menos de US$ 20 por habitante/ano. A variação chega a 500 vezes! As doenças negligenciadas, antes restritas às regiões pobres e subdesenvolvidas sem levar riscos à Europa, Estados Unidos e Canadá, não geravam nenhum interesse da indústria farmacêutica em sua solução. Mas o mundo mudou: hoje a morte mal explicada de uma galinha na Indonésia faz tremer Amsterdã!

Nas décadas passadas, os movimentos contrários à medicamentação, que não considera o impacto dos determinantes sociais no quadro de bem-estar do indivíduo, trouxe à baila a importância dos aspectos da prevenção e da promoção da saúde. Já nos anos 60, especulava-se que as mudanças de comportamento, na biologia humana e no meio ambiente, teriam maior impacto na redução de mortes que as ações do próprio sistema de saúde. O Brasil embarcou firmemente nesta discussão e foi o primeiro do mundo a estabelecer uma comissão nacional para discutir a temática, com expressiva participação de todos os setores, com a missão de destrinchar a complexa relação entre saúde e qualidade de vida. No entanto, ao relativizar o impacto dos serviços de saúde sobre a morbimortalidade na população corremos o risco de adotarmos uma postura niilista: deve-se observar que a maior parte das ações de prevenção e promoção não consegue, isoladamente, influenciar alguns indicadores de saúde como a mortalidade infantil perinatal - problema sabidamente dependente das condições de assistência profissional ao parto.

A avaliação dos diferentes fatores implicados faz ressaltar a importância do informe preparado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), que disseca os aspectos relacionados ao papel e ao espaço do grupo composto pelos trabalhadores da saúde neste universo. O estudo comprova a correlação entre o número de trabalhadores de saúde e os indicadores epidemiológicos dos países e também assume uma linha de corte de 2,5 trabalhadores/100 habitantes como o limiar mínimo. Os países que não conseguem organizar seus sistemas de saúde pela falta de profissionais para tanto, mesmo com ajuda internacional, ficam abaixo dessa linha. Isto é, há um limiar no qual há uma real impossibilidade de se avançar na saúde, resultando na identificação de 57 países "em crise" - a maioria na África subsaariana e no sudoeste da Ásia.

Esse quadro tem preocupado os especialistas em vários pontos do globo. Artigos que têm sido publicados em veículos importantes, como o The Lancet, ressaltam a relação já documentada entre a densidade da força de trabalho em saúde e a diminuição de índices de mortalidades infantil e materna, bem como o aumento nas taxas de imunização. Além disso, a percepção dos estudiosos indica que a baixa densidade desses trabalhadores inviabiliza o combate internacional a doenças como a AIDS, a malária e a tuberculose. O quadro se torna mais grave, pois estes problemas acontecem em regiões do globo onde a incidência dessas doenças é ainda maior. Uma aproximação da iniqüidade na África pode ser apreendida a partir da seguinte constatação: apesar de ter apenas 3% de todos os trabalhadores de saúde do mundo, e apenas 1% dos recursos globais destinados à melhoria da saúde, esse continente carrega 25% da carga mundial de doenças.

A reversão deste cenário se aponta onerosa e lenta. Os países que não possuem nenhuma escola médica e/ou de enfermagem dificilmente terão condições de construi-las e colocá-las efetivamente em operação em curto prazo, ainda que houvesse todos os recursos disponíveis. Capacitar um corpo docente, reter pesquisadores e construir ou adaptar edifícios são tarefas hercúleas num mundo globalizado no qual o brain-draining é facilitado pelos transportes e pela comunicação global. E esse quadro é agravado pelo recrutamento promovido pelos países mais ricos do mundo junto aos mais pobres, onde a imigração de profissionais de áreas periféricas para centros tecnológicos e econômicos torna-se uma prática corrente. Ressaltamos aqui que esta prática influencia, inclusive, o fluxo de divisas para as nações mais pobres, na medida em que cidadãos trabalhando em regiões industrializadas enviam dinheiro regularmente aos parentes que ficaram. Num mundo de escassez de mão-de-obra qualificada, profissionais de saúde adquirem status de recurso humano de luxo em diferentes locais, até mesmo dos mais desenvolvidos. É um aforismo corrente de que há mais médicos do Malawi em Manchester do que em seu país de origem. Essa contabilidade confirma a tese escandalosa de que o povo daquela nação africana subsidia com seus parcos recursos (ao investir na formação de médicos, enfermeiros e outros especialistas ao longo de vários anos) a cobertura assistencial em saúde dos britânicos.

A solução para esse problema se equilibra entre duas variáveis. Num primeiro plano, há que se destacar a possibilidade de aumento maciço do aporte de profissionais qualificados em regiões de necessidade por meio da cooperação internacional para construção de capacidade permanente de formação e treinamento nesses países. De forma complementar, aparece a necessidade se reduzir a drenagem de profissionais de países menos desenvolvidos para aqueles com mais recursos, a partir de acordos diplomáticos. Não há como resolver o problema concentrando o esforço em apenas uma dessas facetas, uma vez que a ênfase isolada no primeiro apenas aumentaria o segundo, sem, necessariamente, fixar os novos profissionais qualificados. Da mesma forma, o foco apenas na restrição migratória não é suficiente para aumentar a força de trabalho em níveis necessários, além de privar países pobres das divisas enviadas pelos emigrados.

O Brasil não está imune a estes problemas. A má distribuição interna de profissionais é agravada por uma delicada questão: a da migração interregional. Sobre o primeiro problema, um estudo realizado há alguns anos mostrou que 80% dos médicos fluminenses se encontravam na cidade do Rio de Janeiro, dos quais 80% (ou seja, 64% do total de médicos fluminenses) se concentravam apenas no bairro de Botafogo. Além disso, o ensino é muitas vezes elitizado, não contemplando as reais necessidades de saúde da população brasileira. Mas estes são apenas alguns dos elementos que têm deixado as autoridades em alerta e as obrigado a buscar soluções para enfrentar esta realidade.

Alguns exemplos dessas ações incluem o estímulo à capacitação de pessoal de nível médio, através do Programa de Formação de Auxiliares de Enfermagem (Profae), considerado como o maior processo de formação de profissionais deste tipo no mundo, e a aproximação das instituições acadêmicas das necessidades reais dos serviços pela integração entre o ensino e os serviços, o que contribui para sensibilizar os jovens e futuros profissionais com a cobertura oferecida pela rede pública. Também podemos citar a geração de evidências pela Rede Observatório de Recursos Humanos em Saúde, que tem monitorado a evolução do quadro na área, com o objetivo de subsidiar ações estratégicas de governo e com o apoio direto de representantes das diferentes categorias e do campo educacional. Trata-se de um esforço que envolve vários segmentos da sociedade e que se tiver seus resultados frustrados pode ter forte conseqüências para a vida em sociedade.

A posição do Brasil no enfrentamento destas distorções relacionadas ao campo do trabalho em saúde é considerada uma referência mundial. O país tem se mostrado interessado em dividir suas experiências de modo que algumas nações já têm demonstrado interesse em importar nossas tecnologias. Esperamos que os avanços conquistados internamente continuem a repercutir para influenciar políticas de combate a iniqüidades e desigualdades em recursos humanos para a saúde em outros cantos do mundo, especialmente em países da África e Ásia. Apesar de parecer distante, a realidade preocupa por mostrar quão vulnerável a comunidade internacional está e o quanto temos de agir rápido para que a segurança epidemiológica se mantenha na Indonésia ou Amsterdã.

Francisco Eduardo de Campos é professor da Faculdade da Medicina Preventiva da Universidade Federal de Minas Gerais, integrante do Conselho Executivo da Organização Mundial da Saúde, representando o Brasil, e do Board da Global Health Workforce Alliance. Atualmente é Secretário da Educação da Gestão e do Trabalho na Saúde do Ministério da Saúde.