Título: De Dakar ao Brasil
Autor: Neri , Marcelo
Fonte: Valor Econômico, 30/12/2008, Opinião, p. A11

Não se trata de um rali de final de ano, de uma perna da regata de volta ao mundo, ou de uma nova aventura do Amir Klink, mas do derradeiro desafio que vai determinar onde vamos chegar como nação - a corrida pela educação. As metas do movimento Todos Pela Educação, coordenadas por quem tem sangue de corrida nas veias, Viviane Senna, representam um caso exemplar de resposta brasileira à iniciativa Education for All (Educação para Todos), proposta em 2000 pela ONU em Dakar.

O fato de o governo federal ter lançado iniciativa quase homônima - a saber, o Plano de Metas Compromisso Todos Pela Educação - no âmbito do Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE) reflete sinergia especial entre esferas internacionais e nacionais, e dentro destas, entre esferas públicas e da sociedade civil. Temos hoje um movimento permeando diferentes nações, mas que é especialmente denso no caso brasileiro, por apontar metas e datas comuns de resultados educacionais por parte do Estado e da sociedade.

As metas educacionais internacionais fixadas em 2000, monitoradas desde então pela Unesco, são como qualquer conjunto de indicadores acompanhados em escala mundial, relativamente vagos a fim de acomodar especificidades de países em estágios de desenvolvimento educacional bem distintos. O grupo técnico do Todos Pela Educação conseguiu dar uma resposta brasileira à altura dos desafios educacionais mundiais e nacionais, tirando partido da riqueza de informações, de conhecimentos e de lideranças locais. O caso brasileiro é exemplar. O Global Monitoring Report da Unesco avaliou mais de 40 experiências mundiais e o caso do Brasil foi um dos quatro selecionados para publicação em revista especializada. Isto reflete o raro alinhamento de ações externas e as internas em curso, bem representado pelos adventos das metas do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) e das 5 Metas recém-anunciadas pelo Todos Pela Educação, culminando ambas na véspera do aniversário da Independência do Brasil, em 2021.

O Ideb é a idéia mais interessante e relevante de política pública no Brasil dos últimos anos. O Ideb varia em uma escala que vai de 0 a 10 e o valor do índice para o Brasil era 3,8 em 2005 - que foi adotado como base pelo Plano de Desenvolvimento Educacional (PDE) e chegou a 4,2 em 2007. Uma meta de 6,0 foi adotada para 2021. Essa estratégia visa levar os resultados educacionais do país como um todo ao mesmo nível observado atualmente na rede privada, ou alternativamente aos índices médios dos países observados na OCDE em 2005. Já o movimento Todos Pela Educação, além de acompanhar o Ideb, monitora cinco metas objetivas associadas ao acesso à escola, à proficiência dos alunos, ao atraso escolar e ao gasto em educação básica. O objetivo não é atuar como uma agência de rating que dá nota aos outros, mas sim prover um sistema de indicadores que permita a cada um lidar com a dissonância existente entre a péssima qualidade de nossos indicadores educacionais objetivos e a percepção captada de maneira recorrente pelo Ibope, por exemplo, de que a escola vai bem na opinião dos brasileiros. Temos todos aprender mais sobre o "pobrema" da educação do país. Precisamos saber que nada sabemos, embora desconfiemos de muita coisa.

Agora, como as duas pernas nacionais do tripé de metas educacionais, ou seja, o Ideb e as 5 Metas, integram-se? A pedido do Todos Pela Educação, do qual eu orgulhosamente faço parte, detalhei uma exposição de motivos acerca da Meta 1 do Todos Pela Educação, referente à quase universalização da freqüência ao ensino básico, que apresento a seguir. Segundo a Meta 1, 98% dos alunos de 4 a 17 anos deverão estar na escola em 2021. Os estudos de desenho de mecanismo para orientar a gestão de políticas públicas tendem a privilegiar metas-fim, em detrimento das chamadas metas-meio. Lembro-me, em 1992, do meu professor de macroeconomia no doutorado, Ben Bernanke, falando de sua posição no debate em curso. Em sua opinião, o Banco Central não deveria traçar metas de juros, a variável-meio, mas sim metas de inflação, a variável-fim. Neste sentido, não seriam as metas de proficiência escolar aquelas que, ao fim e ao cabo, deveriam ser monitoradas. Por que monitorar variáveis meio como freqüência e fluxo escolares? A Meta 1 é uma espécie de elo perdido entre a avaliação e os sem-escola, fornecendo à sociedade insumos fundamentais para medir os resultados efetivamente alcançados a partir de medições de como proficiência escolar. A Meta 1 seria de fundamental importância instrumental, não apenas no processo educacional, mas para se avaliar o significado das variáveis-fim obtidas.

A Meta 1 talvez seja, no conjunto de compromissos do Todos pela Educação, a que mais complemente o Ideb. O Ideb procura, por meio da tensão embutida no produto de indicadores de fluxo e de performance, sintetizar num único número os desafios educacionais locais e nacionais. Isto é, se os gestores educacionais optarem por facilitar a aprovação dos alunos que estão na escola, cresce o indicador de fluxo mas cai o de aprendizado. E vice-versa, ou seja, se o critério de aprovação for mais restritivo, perde-se no fluxo mas ganha-se na nota média de proficiência auferida. O objetivo é não permitir aos gestores atalhos que apenas maquiem a performance educacional efetiva dos alunos. Neste caso, o uso da variável-meio, o fluxo, torna a medição da variável-fim, o aprendizado, mais consistente.

Agora, similarmente, se o objetivo é maximizar o Ideb, os gestores podem optar por manter fora do sistema de ensino um grupo de alunos excluídos do sistema educacional de forma a ocultar tanto o fluxo com a proficiência dos alunos mais pobres que naturalmente apresentem piores fluxos e proficiências prospectivas esperadas. Neste sentido, a Meta 1 adiciona importante pressão ao Ideb, de forma a impedir atitudes oportunistas da pior espécie pelos gestores: a de manter os alunos mais pobres fora da escola para não contaminar os progressos medidos em indicadores de proficiência.

A sociedade poderá monitorar, por meio das metas de universalização do Todos Pela Educação, quem de fato está sendo avaliado. Ou seja, incorporar ao quadro de acompanhamento da sociedade aqueles sem-escola, nem avaliação.

Marcelo Neri é economista-chefe do Centro de Políticas Sociais do IBRE, da REDE e da EPGE, da Fundação Getúlio Vargas. Autor de "Microcrédito, o Mistério Nordestino e o Grameen Brasileiro" e de "Cobertura Previdenciária: Diagnóstico e Propostas de Política", escreve mensalmente às terças.

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